A verdadeira arte subverte, atinge, incomoda, não ilude.
“Mas um romance tem que ser necessariamente uma coisa bela? Talvez não,
ou talvez sim. Um romance se torna necessariamente uma coisa bela ainda que
feito de coisas feias”.(Prefácio do livro “Beleza e tristeza” de Yasunari
Kawabata).
Em um seminário realizado na 26ª Feira do Livro de Buenos Aires, o
vice-presidente da Microsoft fez uma previsão sobre a morte iminente do livro.
Zygmunt Bauman leu essa notícia no Le Monde e a relata num artigo
publicado no “Tempo Brasileiro” com o título: Os livros no diálogo global das
culturas.
O que me interessou nesse texto de Bauman foi quando tratou da
passagem das histórias contadas oralmente para as contadas através do meio
escrito: o livro.
Afirma, então, que o relato de histórias e a audição das mesmas
criavam um vínculo entre o que contava e o que ouvia, e foi o restabelecimento
repetitivo daquele vínculo no ritual de reiteração que sustentou a base
cognitiva para a ideia de continuidade e de parentesco – o “tear caseiro” da
experiência, comumente herdada e usufruída por aqueles cujas práticas de vida
não haviam sido compartilhadas. Foi confortante, trouxe reafirmação, minimizou
ou encobriu as exasperantes incertezas da vida (isto é, talvez, a razão por que
as crianças – ainda lutando “para fazer parte de”, para encontrar o seu lugar
seguro no mundo assustadoramente estranho – adoram ouvir, repetidas vezes, as
mesmas histórias que sabem de cor).
Enquanto o relato de histórias permaneceu oral, para cada grupo de
pessoas havia, também, um número estritamente limitado de histórias a serem
contadas, bem como ouvidas, sempre na presença delas.
Na maioria das vezes, “fazer parte conjuntamente” - “nós” como uma
existência distinta de “eles” – significava ouvir as mesmas histórias,
raramente se podia ouvir outra diferente.
Com o advento da escrita, houve um potencial de mudança: impressas as
histórias poderiam viajar sem os contadores, e cruzar as fronteiras que
separavam “nós” e “eles”.
Contadores cujas histórias são impressas podem contar com um número
significativo de ouvintes. O círculo de leitores e o de “parentesco” (do grupo)
não precisam mais coincidir.
Com isso, os contadores de histórias poderiam enfatizar o destino um
tanto desconcertante embutido numa estimulante oportunidade de superação, ou
seja, de ir além daquele aspecto de suas experiências compartilhadas com os
leitores (anteriormente limitada ao grupo).
Nas palavras de Hannah Arendt, que designou para os artistas a tarefa
de “adicionar ao mundo” (inserir no mundo alguma coisa que não estava lá antes.
O que é um ato distinto de preservar, mais uma vez, o que já foi dito e
redito).
Pôs em risco a continuidade e a separação do grupo cujo mundo ele
encarnava. O livro que adicionasse ao mundo – em vez de exibir, uma vez mais,
seu ”auto-retrato-familiar”- perturbaria a ordem das coisas em lugar de
preservar intacta a forma que ela assumira previamente.
O livro (e as demais manifestações da arte) poderia chocar-se com a
sabedoria recebida do mundo ou, a qualquer custo, insuflar dúvida sobre sua
exclusiva pretensão à verdade. Ao invés de ser, como antes, um instrumento de
continuidade e separação, o livro (e a arte) se transformou num fermento de
Auto-reflexão e mudança.
As artes haviam se tornado subversivas.
A arte (nota Kundera em A arte do romance) “como Penélope, ela desfaz
toda noite o tapete que os teólogos, filósofos e homens cultos teceram no dia
anterior”. Visto que ela não poderia senão fazer a mediação entre as diversas
experiências humanas, minando assim as certezas de cada uma delas, a ficção
artística serviu como uma contracultura irônica e irreverente à cultura
tecnocientífica e burocrática da modernidade, que promoveu a obsessão pela
ordem, por classificações concisas e hierarquias severas, pela conformidade à
regra e pela disciplina rígida.
PS: Não sei quem foi o comentador do texto do Zygmunt Bauman. Seja quem for dou-lhe o crédito pelo texto.
PS: Não sei quem foi o comentador do texto do Zygmunt Bauman. Seja quem for dou-lhe o crédito pelo texto.