terça-feira, 25 de novembro de 2014

O homem é um ser submetido às possibilidades do erro ou do acerto, portanto, um ser analógico, e não digital

Este texto decorre da minha leitura do livro de Otl Aicher – Analógico y digital (Editora Gustavo Gili S.A., Barcelona).
O livro é muito objetivo, o que me levou a expandir minhas ideias sobre o assunto em questão. Basicamente me detenho no fato do homem, diferentemente dos outros animais, transcender a sua programação biológica, sendo, portanto, um ser para a liberdade.
Aicher critica a supervalorização que atualmente estamos concedendo à abstração e a exatidão lógica, que ele denomina de “digital”, em detrimento do intuitivo, do apreendido a partir do vivido (da experiência prática e da percepção sensorial), que, em contraposição, denomina de “analógico”.
É importante ter em conta ao ler esse texto que os exemplos apresentados a seguir, do relógio e do GPS, não pretendem negar a utilidade nem a eficiência dos citados mecanismos (o que não está em questão), apenas foram tomados para ressaltar o que essencialmente difere o analógico do digital. Para esse texto, não interessam os mecanismos em si, pois o objetivo é claro: mostrar que o homem é um ser analógico.
Passemos ao exemplo do relógio.
O relógio digital tem a precisão de segundos. Informa magnitudes numéricas exatas, mas não esclarece, por si mesmo, o movimento da passagem do tempo (nos mostra apenas uma série numérica).
Já o analógico, apesar de menos preciso, está mais próximo do nosso vivido, pois nos revela visualmente a totalidade do movimento cíclico que caracteriza a passagem do tempo em sua repetição periódica e interminável (onde tudo se reinicia exatamente onde termina).
Como num mapa, podemos dividir a esfera do relógio analógico em quatro regiões que mostram a totalidade do encadeamento da passagem do tempo: na região direita vemos passar a madrugada (da meia noite às seis da manhã), e na região esquerda a manhã (das seis da manhã ao meio dia), assim, assistimos passar uma volta completa dos ponteiros; agora, na região direita quem passa é a tarde (do meio dia às seis da noite), e na região esquerda a noite (das seis da noite à meia noite). Com isso, todo o ciclo do tempo termina e torna a recomeçar.
Mesmo que o relógio analógico não tivesse os seus números, ainda assim poderíamos interpretar a passagem do tempo (lembremo-nos do relógio do sol utilizado pelos nossos antepassados, formados por uma superfície plana que serve como mostrador, onde estão marcadas linhas que indicam as horas, e por uma placa, cuja sombra projetada sobre o mostrador funciona como um ponteiro de horas em um relógio comum. À medida que a posição do sol varia, a sombra desloca-se pela superfície do mostrador, passando sucessivamente pelas linhas que indicam as horas). Já no relógio digital a falta dos números seria fatal (pois o digital não sobrevive sem os números).
Esses tempos pós-modernos, que tudo nivela numa precisão inumana (numa certeza digital), tentam superar as diferenças próprias da natureza (também da natureza humana) continuamente submetida à possibilidade do erro ou do acerto (somos humanos, imperfeitos e finitos, e não deuses, perfeitos e eternos).
O homem pós-moderno se entregou ao inanimado, ao abstrato, ao virtual (simulação da realidade criada por meios eletrônicos) que caracterizam a precisão digital. O homem está a cada dia desaprendendo, perdendo a sua capacidade de, por si próprio, pensar e interpretar o sentido das coisas, apenas se atendo à precisão dos números.
O verdadeiro sentido das coisas só se revela através das relações analógicas que são tecidas na experiência do vivido.
A indicação digital apresenta um valor exato, indiscutível, um signo limitado à bitola de uma expressão numérica. Enquanto a indicação analógica mostra a relatividade das medidas e dos valores, a diversidade, as partes compondo a totalidade.
Os numerais (nove, cinco, dois) são neutros (significando sempre, exatamente, aquilo que são), os ordinais, têm um caráter analógico, por estabelecerem relações, analogias: o primeiro prêmio, meio litro de cerveja, meio dia.
Essa maneira relacional de pensar pressupõe uma recepção qualitativa de realidades. Qualidade é outra palavra para relação, analogia, pois onde tem relações há comparação e valoração.
As vantagens práticas dos mecanismos digitais (capacidade de armazenamento, precisão, exatidão, velocidade, etc.) nos precipitaram em uma era digital. O seu impacto no modo de ser do homem já pode ser observado: é brutal e impressionante a modificação que tem implicado em nossa cultura, em nosso comportamento, em nossa compreensão do mundo, em nossa existência.
É quase como se o ser humano tivesse adquirido uma segunda natureza, ou seja, a técnica digital aproxima, cada vez mais, o homem do modo de ser digital. A nossa existência, para maior eficiência dos órgãos de controle social, passa a ser medida em números e códigos, seja na escola, na família, como cidadão, no mercado de trabalho, como consumidor, e em todas as suas atividades. O homem é unidimensionalizado, catalogado com segurança através de uma numeração, pois, assim, ficam eliminadas as idiossincrasias próprias da individualidade.
A categorização, própria da informação meramente numérica, esconde a realidade e descarta o particular (o homem real, concreto).  
O homem pensa a partir dos estímulos externos da percepção e percebe com a ajuda do pensar. O homem existe em conjunção com o mundo natural (real), imprevisível, falível, cheio de possibilidades, e, por isso mesmo, é por natureza um ser analógico.
É vivenciando, existindo no mundo real, que o homem, diante das diferentes situações, as compara valora e relaciona, produzindo analogias. E é na possibilidade de acertar ou errar que está constituída a nossa liberdade, o nosso modo propriamente humano de ser.
O motorista que conduz seu veículo orientado por um GPS, que lhe indica o caminho exato que deve tomar, não está exercendo a sua liberdade de escolha.
Por outro lado, aquele que escolhe seu caminho na visão geral apresentada por um mapa está livre, pois pode chegar ao mesmo destino escolhendo, entre diversas rotas, aquela que melhor lhe aprouver, abrindo a possibilidade de, ao tomar um caminho mais longo e acidentado, deparar com uma linda e inesperada paisagem (uma cachoeira, uma árvore centenária, um animal a passear ou qualquer outra surpresa reservada pela natureza).
Essa tendência digital vem se impondo sistematicamente ao homem contemporâneo, aproximando seu modo de ser ao do robô cibernético, que é baseado na exatidão e na precisão. A vida humana (a parte pensante da natureza) não está fundamentada na precisão, mas em apreender conexões, estados, relações, condições, analogias, que se apresentam como liberdade de escolhas na nossa existência moral, política, estética, religiosa e cultural.
A verdade não é absoluta, pois se dissolve em múltiplos significados que se formam em diferentes perspectivas que se apresentam ao homem em sua existência, em outras palavras, o existir do homem é “pura possibilidade de ser no mundo”. A realidade não é um absoluto que se repete sempre, mas o resultado de uma (con)juntura, do homem com a natureza e do homem com o outro homem, que se organiza, a cada vez, para formar uma nova e inédita realidade.  
O homem é um ser dotado do senso crítico, e é, por isso, um ser analógico e não digital.
Apesar dos conceitos de analógico e digital procederem do campo da técnica eletrônica, podemos utilizá-los para refletir sobre os cuidados que devemos tomar para não permitir que a experiência digital (muito importante enquanto um instrumento controlado pelo homem e não controlando o homem) comande e transforme o nosso modo de ser propriamente humano: analógico.

Em 12/06/2011 (alterado em 25/2014)


Santacruz 

domingo, 9 de novembro de 2014

Senso comum, obstáculo à mudança

Um paradigma (do grego “paradéigma”/modelo) serve para indicar os rumos do conhecimento, das relações sociais (família, escola, classes sociais), das crenças, das artes, do desempenho econômico. Enfim, o tipo de cultura que ditou a maneira do homem interpretar a realidade, o mundo, em determinadas épocas.
Para que haja avanços civilizatórios é necessário que paradigmas sejam quebrados, ultrapassados. É necessária uma desconstrução de todo um modo de pensar (um paradigma é insuperável até deixar de sê-lo - Popper).
Somente uma mudança radical na forma do homem pensar pode propiciar uma verdadeira e radical mudança na sua atitude perante o outro e o mundo e ele mesmo.
O maior obstáculo a qualquer mudança é o “senso comum”, ou seja, o modo de pensar próprio do coletivo que constrói suas verdades a partir do que é dito e ouvido (do que “rola”) no ambiente mundano (p.ex. jornais, revistas, livros de auto-ajuda, novelas como meio de disseminação de valores). 
As premissas próprias do “senso comum” negam a mudança no tempo e no espaço para justificar a imobilidade, pensar o mundo como algo permanente, seguro e sem surpresas: “o mundo sempre foi assim” (premissa que nega a possibilidade de mudança no tempo histórico) e “todo mundo faz isso” (premissa que nega a possibilidade de mudança no espaço social).  
A seguir, cito alguns âmbitos onde a aparência do “conhecimento” compromete o verdadeiro conhecimento: deformação na educação que se transforma a cada dia num método de reprodução do já existente e estabelecido, adestramento, e não de reflexão; informações, costumes e valores superficiais difundidos na TV; visão de mundo através de perspectiva ideológica ou religiosa (a essência de qualquer ideologia, mera religião sem deus, é sempre afastar, excluir tudo que é contrário ao seu ideário*); dependência da tecnologia e do mercado (preciso ter, não ser).
(*) Ideologia – bitola estreita para orientar o pensamento. Não existe pensador católico, nem pensador marxista. Só existe pensador preso a nada, que pensa, a todo risco. A ideologia leva à idolatria, à feitura e adoração de mitos (Millôr Fernandes, revista Veja 30/01/2008).
Como antídoto a essas premissas (perigosas por promoverem a inércia através da apologia da mesmice), coloco as seguintes questões à nossa reflexão:
O mundo de hoje é muito menor (espaço) e muito mais rápido (tempo) que o mundo antigo e medieval. O que significa uma diferença radical.
As atitudes, escolhas, opções e ações tomadas hoje pelo homem, dada a sua amplitude e abrangência nesse diminuto mundo global, podem comprometer como nunca antes a sobrevivência do planeta.
Nas palavras de Amin Malouf, em seu livro “O mundo em desajuste”: “Se algumas comunidades sobreviveram, séculos após séculos, foi porque o destino delas estava ligado principalmente a peripécias locais e não constantemente afetado por todos os acontecimentos do planeta. Quando um incidente grave acontecia num vilarejo, muitas vezes semanas eram necessárias para que o restante da região ouvisse falar dele, o que limitava suas repercussões”. Exatamente como a expansão das doenças contagiosas na atualidade.     
Um déspota da Roma antiga, dado o seu espaço restrito de atuação no planeta, não comprometia todo um processo civilizatório. Hoje, líderes de poderosas nações (como os EUA, a China ou a Rússia) podem promover muitos desastres (bélicos, ecológicos, sociais, econômicos e políticos).
Nero, déspota romano, era infinitamente mais perigoso (louco) que Bush. Mas, um dirigente egocêntrico, hoje, com o dedo no botão que aciona os mísseis em direção aos “inimigos”, tem intensificada à centésima potência a sua periculosidade.
O mundo global é tão pequeno que um conflito regional e localizado (em países “insignificantes”) é apenas aparentemente regional, porque, hoje, todos os interesses são globalizados, e traz em seu rastro uma importância geo-política que tem o poder de repercutir no planeta como um todo. Ações semelhantes tomadas no passado (quando o nosso planeta era composto por milhares de micro regiões) e hoje (quando vivemos apertados num único micro mundo) se mostram totalmente diferentes por conta do fator “repercussão”.
Injustiças sociais, políticos que corrompem o tecido social, político e econômico de um país, violência, esvaziamento do pensamento e da reflexão, decadência, atitudes egocêntricas, drogas, poder, desejo, mercado, alienação, tudo isso e muitas outras atitudes tem hoje um poder de disseminação, contaminação social, política e econômica infinitamente superior a qualquer outra ameaça que um tirano ou grupo social possa ter praticado contra o seu espaço físico em seu tempo.
A presença do homem no planeta se tornou um fator de perturbação do ambiente, pela prática de ações que vem abalando o solo que lhe dá guarida, desestabilizando o corpo que lhe dá vida, solapando as bases de que depende sua própria existência.
Nas palavras de Günter Anders (*): “Há uma distância entre nossa capacidade de fabricar e realizar e a nossa incapacidade de imaginar as conseqüências do que fabricamos. Nossa percepção não está mais à altura do que podemos produzir”.
(*) Anders Günther Anders, pseudônimo de Günther Stern jornalista, filósofo e ensaísta alemão de origem judaica. Doutorou-se em filosofia, em 1923, sob a orientação de Edmund Husserl.
O homem não se tornou pior, apenas as suas ações se tornaram mais carregadas de conseqüências.
Para Günther nada prova de fato que os homens de agora, que cometeram erros monstruosos, organizaram genocídios, sejam piores do que os de gerações precedentes. Apenas, as possibilidades técnicas disponíveis na nossa época provocam danos que jamais poderíamos imaginar possíveis, e cada vez mais perto do irreparável.
Freud, em seu ensaio “O mal estar na civilização” adverte para a possibilidade de destruição total, em decorrência do progresso da racionalidade na técnica e na ciência como fatores que geraram um potencial jamais visto da violência humana (não mais os atos violentos em disputas territoriais regionais, como nas guerras passadas, mas o estado de violência e todo seu potencial de destruição fora de controle das decisões humanas).
“Os homens alcançaram tal domínio sobre as forças da natureza que lhes tornou fácil hoje em dia servir-se delas para se exterminarem mutuamente, quem sabe até o último homem” (Freud).
O mais incrível é que o homem sabe disso, daí provém uma boa parte da inquietação atual, de seu mal-estar e de sua angústia. Saber que forças incontroláveis se movem, sem que haja um centro de comando humano que possa decidir a continuidade ou não do mesmo. Somos todos responsáveis, e ao mesmo tempo ninguém se considera responsável por não ter o poder de controle sobre os acontecimentos.
O processo superou, desprendeu-se da vontade do homem.
Nas palavras de um homem qualificado para refletir sobre o nosso destino (Freud em seu diálogo com Einstein, transcrito no livro Guerra e morte): “Mas quem é que poderá prever o resultado e o desfecho”.
Para concluir: nem sempre foi assim, e nem todo o mundo faz assim, pois o mundo, com o tempo, mudou e cada vez vai mudar mais em curtos espaços de tempo.
Portanto, temos que considerar que hoje vivemos sob uma nova realidade, mundo pequeníssimo e tempo velocíssimo. Tudo dos encaminha (empurra) para as atitudes apressadas e para os pensamentos superficiais (por conta da falta de tempo) e unidimensionais (por conta da alienação, da massificação a que somos constantemente submetidos). 
Nunca os seres humanos estiveram, espacialmente, tão próximos, mas tão distantes dos seus iguais.

24/12/2010 (alterado em 09 de novembro de 2014)

Santacruz