O homem é um
ser submetido às possibilidades do erro ou do acerto, portanto, um ser analógico,
e não digital
Este
texto decorre da minha leitura do livro de Otl Aicher – Analógico y digital (Editora
Gustavo Gili S.A., Barcelona).
O
livro é muito objetivo, o que me levou a expandir minhas ideias sobre o assunto
em questão. Basicamente me detenho no fato do homem, diferentemente dos outros
animais, transcender a sua programação biológica, sendo, portanto, um ser para
a liberdade.
Aicher
critica a supervalorização que atualmente estamos concedendo à abstração e a
exatidão lógica, que ele denomina de “digital”, em detrimento do intuitivo, do
apreendido a partir do vivido (da experiência prática e da percepção
sensorial), que, em contraposição, denomina de “analógico”.
É
importante ter em conta ao ler esse texto que os exemplos apresentados a
seguir, do relógio e do GPS, não pretendem negar a utilidade nem a eficiência
dos citados mecanismos (o que não está em questão), apenas foram tomados para
ressaltar o que essencialmente difere o analógico do digital. Para esse texto,
não interessam os mecanismos em si, pois o objetivo é claro: mostrar que o
homem é um ser analógico.
Passemos
ao exemplo do relógio.
O relógio
digital tem a precisão de segundos. Informa
magnitudes numéricas exatas, mas não esclarece, por si mesmo, o movimento da
passagem do tempo (nos mostra apenas uma série numérica).
Já
o analógico, apesar de menos preciso,
está mais próximo do nosso vivido, pois nos revela visualmente a totalidade do movimento
cíclico que caracteriza a passagem do tempo em sua repetição periódica e
interminável (onde tudo se reinicia exatamente onde termina).
Como
num mapa, podemos dividir a esfera do relógio analógico em quatro regiões que mostram
a totalidade do encadeamento da passagem do tempo: na região direita vemos
passar a madrugada (da meia noite às seis
da manhã), e na região esquerda a manhã
(das seis da manhã ao meio dia), assim, assistimos passar uma volta completa
dos ponteiros; agora, na região direita quem passa é a tarde (do meio dia às seis da noite), e na região esquerda a noite (das seis da noite à meia noite).
Com isso, todo o ciclo do tempo termina
e torna a recomeçar.
Mesmo
que o relógio analógico não tivesse os seus números, ainda assim poderíamos
interpretar a passagem do tempo (lembremo-nos do relógio do sol utilizado pelos
nossos antepassados, formados por uma superfície plana que serve como mostrador, onde estão
marcadas linhas que indicam as horas, e por uma placa, cuja sombra projetada
sobre o mostrador funciona como um ponteiro de horas em um relógio comum. À
medida que a posição do sol varia, a sombra desloca-se pela superfície do
mostrador, passando sucessivamente pelas linhas que indicam as horas). Já no relógio digital a falta dos números seria
fatal (pois o digital não sobrevive sem os números).
Esses
tempos pós-modernos, que tudo nivela numa precisão inumana (numa certeza
digital), tentam superar as diferenças próprias da natureza (também da natureza
humana) continuamente submetida à possibilidade do erro ou do acerto (somos
humanos, imperfeitos e finitos, e não deuses, perfeitos e eternos).
O
homem pós-moderno se entregou ao inanimado, ao abstrato, ao virtual (simulação
da realidade criada por meios eletrônicos) que caracterizam a precisão digital.
O homem está a cada dia desaprendendo, perdendo a sua capacidade de, por si próprio,
pensar e interpretar o sentido das coisas, apenas se atendo à precisão dos números.
O verdadeiro
sentido das coisas só se revela através das relações analógicas que são tecidas
na experiência do vivido.
A
indicação digital apresenta um valor exato, indiscutível, um signo limitado à
bitola de uma expressão numérica. Enquanto a indicação analógica mostra a
relatividade das medidas e dos valores, a diversidade, as partes compondo a totalidade.
Os
numerais (nove, cinco, dois) são neutros (significando sempre, exatamente,
aquilo que são), os ordinais, têm um caráter analógico, por estabelecerem
relações, analogias: o primeiro prêmio, meio litro de cerveja, meio dia.
Essa
maneira relacional de pensar pressupõe uma recepção qualitativa de realidades.
Qualidade é outra palavra para relação, analogia, pois onde tem relações
há comparação e valoração.
As
vantagens práticas dos mecanismos digitais (capacidade de armazenamento, precisão,
exatidão, velocidade, etc.) nos precipitaram em uma era digital. O seu impacto
no modo de ser do homem já pode ser observado: é brutal e impressionante a
modificação que tem implicado em nossa cultura, em nosso comportamento, em
nossa compreensão do mundo, em nossa existência.
É
quase como se o ser humano tivesse adquirido uma segunda natureza, ou seja, a
técnica digital aproxima, cada vez mais, o homem do modo de ser digital. A nossa
existência, para maior eficiência dos órgãos de controle social, passa a ser
medida em números e códigos, seja na escola, na família, como cidadão, no
mercado de trabalho, como consumidor, e em todas as suas atividades. O homem é unidimensionalizado,
catalogado com segurança através de uma numeração, pois, assim, ficam
eliminadas as idiossincrasias próprias da individualidade.
A
categorização, própria da informação meramente numérica, esconde a realidade e descarta
o particular (o homem real, concreto).
O
homem pensa a partir dos estímulos externos da percepção e percebe com a ajuda
do pensar. O homem existe em conjunção com o mundo natural (real),
imprevisível, falível, cheio de possibilidades, e, por isso mesmo, é por natureza um ser analógico.
É
vivenciando, existindo no mundo real, que o homem, diante das diferentes
situações, as compara valora e relaciona, produzindo analogias. E é na
possibilidade de acertar ou errar que está constituída a nossa liberdade, o nosso modo propriamente humano de ser.
O
motorista que conduz seu veículo orientado por um GPS, que lhe indica o caminho
exato que deve tomar, não está exercendo a sua liberdade de escolha.
Por
outro lado, aquele que escolhe seu caminho na visão geral apresentada por um mapa
está livre, pois pode chegar ao mesmo destino escolhendo, entre diversas rotas,
aquela que melhor lhe aprouver, abrindo a possibilidade de, ao tomar um caminho
mais longo e acidentado, deparar com uma linda e inesperada paisagem (uma
cachoeira, uma árvore centenária, um animal a passear ou qualquer outra
surpresa reservada pela natureza).
Essa
tendência digital vem se impondo sistematicamente ao homem contemporâneo, aproximando
seu modo de ser ao do robô cibernético, que é baseado na exatidão e na precisão.
A vida humana (a parte pensante da natureza) não está fundamentada na precisão,
mas em apreender conexões, estados, relações, condições, analogias, que
se apresentam como liberdade de escolhas na nossa existência moral, política,
estética, religiosa e cultural.
A
verdade não é absoluta, pois se dissolve em múltiplos significados que se formam
em diferentes perspectivas que se apresentam ao homem em sua existência, em
outras palavras, o existir do homem é “pura possibilidade de ser no mundo”. A
realidade não é um absoluto que se repete sempre, mas o resultado de uma (con)juntura,
do homem com a natureza e do homem com o outro homem, que se organiza, a cada
vez, para formar uma nova e inédita realidade.
O
homem é um ser dotado do senso crítico, e é, por isso, um ser analógico e não
digital.
Apesar
dos conceitos de analógico e digital procederem do campo da técnica eletrônica,
podemos utilizá-los para refletir sobre os cuidados que devemos tomar para não
permitir que a experiência digital (muito importante enquanto um instrumento
controlado pelo homem e não controlando o homem) comande e transforme o nosso
modo de ser propriamente humano: analógico.
Em
12/06/2011 (alterado em 25/2014)
Santacruz