domingo, 9 de novembro de 2014

Senso comum, obstáculo à mudança

Um paradigma (do grego “paradéigma”/modelo) serve para indicar os rumos do conhecimento, das relações sociais (família, escola, classes sociais), das crenças, das artes, do desempenho econômico. Enfim, o tipo de cultura que ditou a maneira do homem interpretar a realidade, o mundo, em determinadas épocas.
Para que haja avanços civilizatórios é necessário que paradigmas sejam quebrados, ultrapassados. É necessária uma desconstrução de todo um modo de pensar (um paradigma é insuperável até deixar de sê-lo - Popper).
Somente uma mudança radical na forma do homem pensar pode propiciar uma verdadeira e radical mudança na sua atitude perante o outro e o mundo e ele mesmo.
O maior obstáculo a qualquer mudança é o “senso comum”, ou seja, o modo de pensar próprio do coletivo que constrói suas verdades a partir do que é dito e ouvido (do que “rola”) no ambiente mundano (p.ex. jornais, revistas, livros de auto-ajuda, novelas como meio de disseminação de valores). 
As premissas próprias do “senso comum” negam a mudança no tempo e no espaço para justificar a imobilidade, pensar o mundo como algo permanente, seguro e sem surpresas: “o mundo sempre foi assim” (premissa que nega a possibilidade de mudança no tempo histórico) e “todo mundo faz isso” (premissa que nega a possibilidade de mudança no espaço social).  
A seguir, cito alguns âmbitos onde a aparência do “conhecimento” compromete o verdadeiro conhecimento: deformação na educação que se transforma a cada dia num método de reprodução do já existente e estabelecido, adestramento, e não de reflexão; informações, costumes e valores superficiais difundidos na TV; visão de mundo através de perspectiva ideológica ou religiosa (a essência de qualquer ideologia, mera religião sem deus, é sempre afastar, excluir tudo que é contrário ao seu ideário*); dependência da tecnologia e do mercado (preciso ter, não ser).
(*) Ideologia – bitola estreita para orientar o pensamento. Não existe pensador católico, nem pensador marxista. Só existe pensador preso a nada, que pensa, a todo risco. A ideologia leva à idolatria, à feitura e adoração de mitos (Millôr Fernandes, revista Veja 30/01/2008).
Como antídoto a essas premissas (perigosas por promoverem a inércia através da apologia da mesmice), coloco as seguintes questões à nossa reflexão:
O mundo de hoje é muito menor (espaço) e muito mais rápido (tempo) que o mundo antigo e medieval. O que significa uma diferença radical.
As atitudes, escolhas, opções e ações tomadas hoje pelo homem, dada a sua amplitude e abrangência nesse diminuto mundo global, podem comprometer como nunca antes a sobrevivência do planeta.
Nas palavras de Amin Malouf, em seu livro “O mundo em desajuste”: “Se algumas comunidades sobreviveram, séculos após séculos, foi porque o destino delas estava ligado principalmente a peripécias locais e não constantemente afetado por todos os acontecimentos do planeta. Quando um incidente grave acontecia num vilarejo, muitas vezes semanas eram necessárias para que o restante da região ouvisse falar dele, o que limitava suas repercussões”. Exatamente como a expansão das doenças contagiosas na atualidade.     
Um déspota da Roma antiga, dado o seu espaço restrito de atuação no planeta, não comprometia todo um processo civilizatório. Hoje, líderes de poderosas nações (como os EUA, a China ou a Rússia) podem promover muitos desastres (bélicos, ecológicos, sociais, econômicos e políticos).
Nero, déspota romano, era infinitamente mais perigoso (louco) que Bush. Mas, um dirigente egocêntrico, hoje, com o dedo no botão que aciona os mísseis em direção aos “inimigos”, tem intensificada à centésima potência a sua periculosidade.
O mundo global é tão pequeno que um conflito regional e localizado (em países “insignificantes”) é apenas aparentemente regional, porque, hoje, todos os interesses são globalizados, e traz em seu rastro uma importância geo-política que tem o poder de repercutir no planeta como um todo. Ações semelhantes tomadas no passado (quando o nosso planeta era composto por milhares de micro regiões) e hoje (quando vivemos apertados num único micro mundo) se mostram totalmente diferentes por conta do fator “repercussão”.
Injustiças sociais, políticos que corrompem o tecido social, político e econômico de um país, violência, esvaziamento do pensamento e da reflexão, decadência, atitudes egocêntricas, drogas, poder, desejo, mercado, alienação, tudo isso e muitas outras atitudes tem hoje um poder de disseminação, contaminação social, política e econômica infinitamente superior a qualquer outra ameaça que um tirano ou grupo social possa ter praticado contra o seu espaço físico em seu tempo.
A presença do homem no planeta se tornou um fator de perturbação do ambiente, pela prática de ações que vem abalando o solo que lhe dá guarida, desestabilizando o corpo que lhe dá vida, solapando as bases de que depende sua própria existência.
Nas palavras de Günter Anders (*): “Há uma distância entre nossa capacidade de fabricar e realizar e a nossa incapacidade de imaginar as conseqüências do que fabricamos. Nossa percepção não está mais à altura do que podemos produzir”.
(*) Anders Günther Anders, pseudônimo de Günther Stern jornalista, filósofo e ensaísta alemão de origem judaica. Doutorou-se em filosofia, em 1923, sob a orientação de Edmund Husserl.
O homem não se tornou pior, apenas as suas ações se tornaram mais carregadas de conseqüências.
Para Günther nada prova de fato que os homens de agora, que cometeram erros monstruosos, organizaram genocídios, sejam piores do que os de gerações precedentes. Apenas, as possibilidades técnicas disponíveis na nossa época provocam danos que jamais poderíamos imaginar possíveis, e cada vez mais perto do irreparável.
Freud, em seu ensaio “O mal estar na civilização” adverte para a possibilidade de destruição total, em decorrência do progresso da racionalidade na técnica e na ciência como fatores que geraram um potencial jamais visto da violência humana (não mais os atos violentos em disputas territoriais regionais, como nas guerras passadas, mas o estado de violência e todo seu potencial de destruição fora de controle das decisões humanas).
“Os homens alcançaram tal domínio sobre as forças da natureza que lhes tornou fácil hoje em dia servir-se delas para se exterminarem mutuamente, quem sabe até o último homem” (Freud).
O mais incrível é que o homem sabe disso, daí provém uma boa parte da inquietação atual, de seu mal-estar e de sua angústia. Saber que forças incontroláveis se movem, sem que haja um centro de comando humano que possa decidir a continuidade ou não do mesmo. Somos todos responsáveis, e ao mesmo tempo ninguém se considera responsável por não ter o poder de controle sobre os acontecimentos.
O processo superou, desprendeu-se da vontade do homem.
Nas palavras de um homem qualificado para refletir sobre o nosso destino (Freud em seu diálogo com Einstein, transcrito no livro Guerra e morte): “Mas quem é que poderá prever o resultado e o desfecho”.
Para concluir: nem sempre foi assim, e nem todo o mundo faz assim, pois o mundo, com o tempo, mudou e cada vez vai mudar mais em curtos espaços de tempo.
Portanto, temos que considerar que hoje vivemos sob uma nova realidade, mundo pequeníssimo e tempo velocíssimo. Tudo dos encaminha (empurra) para as atitudes apressadas e para os pensamentos superficiais (por conta da falta de tempo) e unidimensionais (por conta da alienação, da massificação a que somos constantemente submetidos). 
Nunca os seres humanos estiveram, espacialmente, tão próximos, mas tão distantes dos seus iguais.

24/12/2010 (alterado em 09 de novembro de 2014)

Santacruz 






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