terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Desconstrução da Metafísica

A crise do pensamento ocidental

“Esta crise não é a crise do sistema capitalista, como muitos imaginam: é a crise de toda uma concepção do mundo” (Ernesto Sabato, A resistência).

“A crise que hoje atravessamos não é somente de caráter social, econômico, ou mesmo moral. Encontramo-nos diante de um desafio: o de saber realizar uma superação criadora deste momento que nos permita alcançar um novo patamar de pensamento, uma outra maneira de experienciar o mundo e nós mesmos” (Nancy Mangabeira Unger, Da foz à nascente).

“Vivemos uma época rica de produção e indigente de pensamento” (Emmanuel Carneiro Leão, Filosofia e Psicanálise – Aprendendo a Pensar).

“A filosofia não é apenas, como pensa o ‘senso comum’, uma abstração que nada tem a ver com o concreto e o cotidiano. Na verdade a filosofia nos torna mais conscientes do mundo, dos outros e de nós mesmos, modificando-nos em todos os aspectos da vida, tornando-nos mais livres. A tarefa primordial da filosofia é conduzir o homem para além da postura ingênua e imediatista frente à realidade para instaurar uma dimensão crítica (Ernildo Stein, nota ao livro “O que é a metafísica” de Martin Heidegger).

NOTAS

- Este texto é um rascunho onde fixo meu pensamento, uma tentativa de dar-lhe uma forma. Evitar que minhas leituras se percam na minha (des)memória.
Razão pela qual não pretendo reivindicar o rigor formal próprio dos escritos acadêmicos. Penso que a impossibilidade de dizer tudo de forma rigorosa e precisa não deve inibir a tentativa de, pelo menos, transmitir alguma coisa.

- Esse texto é para ser lido como um ponto de partida, razão pela qual visitaremos inúmeros conceitos e definições necessários para facilitar a sua compreensão.

- Quanto ao conteúdo, é uma tentativa de expressar sinteticamente como o pensamento ocidental foi moldado no decorrer do período que vai da antiguidade ao mundo moderno (chamado por Heidegger de pensamento da tradição metafísica ocidental), e suas consequências para o mundo contemporâneo.

- Quanto às concepções de Martin Heidegger (pensador alemão do séc. XX), através das quais procuro orientar o desenvolvimento desse texto, informo, de pronto, que são de difícil compreensão mesmo para mim que me aventuro a trilhar parte do seu pensamento.
Tal dificuldade não é de natureza intelectiva, mas muito mais profunda, pois se trata de uma mudança radical no modo ocidental de ver e pensar o mundo (atrelado à nossa tradicional formação greco-judaica-cristã), o que dificulta sobremaneira a nossa capacidade (e de muitos estudiosos ainda envolvidos pelo pensamento da tradição filosófica) de compreender a proposta revolucionária de Heidegger.
Por esta razão, no afã de apresentar uma chave para a compreensão das suas ideias, transmito de modo demasiadamente simplificado e repetitivo o seu pensamento.
- Finalmente, nas palavras do professor Gilvan: “Erros, deficiências, imprecisões, incongruências, confusões, vesgueadas, gagueiras – tudo isso o texto com certeza tem, mas, ainda assim, ele aí vai e com aquela altivez limpa e despojada do Quixote ... (Conhecer é criar – Gilvan Fogel).  


A história das idéias pode, somente para fins didáticos*, ser agrupada por paradigmas (do grego “paradéigma”: modelo).
Um paradigma serve para indicar os rumos do conhecimento, das relações sociais (família, escola, classes sociais), das crenças, das artes, do desempenho econômico em uma determinado tempo histórico. Enfim, o tipo de cultura que ditou a maneira do homem interpretar a realidade, o mundo, em determinadas épocas.
Cada paradigma, com toda compreensão que lhe é própria, apresenta um universo específico, que funciona “a priori” como uma moldura.
O espanto diante do universo e de si mesmo e a admiração em face do mistério da existência estão na origem do pensamento. A pergunta filosófica por excelência é: “O que está por trás, o que fundamenta tudo isso que existe, a totalidade do real?”.
Embora o homem, em seu limitado mundo, sempre esteja, apenas, em contato com parte do real, sempre buscou apreender a totalidade do mundo (que ele toca, que ele vê, que ele pensa, imagina e sonha), e não apenas parte dele. Diferente do animal não racional que, simplesmente, procura se adaptar (biologicamente) ao ambiente limitado que o envolve. 
Em cada época da sua história sob a face da Terra, o homem elegeu diferentes elementos como fundadores da realidade em que vivia: ora o cosmo (o mundo no seu sentido mais amplo), ora Deus, ora o próprio homem.

*Mais tarde veremos que reduzir determinados pensadores a interpretes de sua época é razoável, mas o pensamento radical de Heidegger, que trata do acontecer originário de cada coisa, não pode ser inserido em um contexto de época.

Mundo (Cosmocentrismo)
Os mais antigos ancestrais do homem buscaram nas narrativas míticas (cosmogonia: “kosmos” = ordem universal + “gónos” = geração) a fonte de explicação para os fenômenos da natureza, a realidade com a qual se defrontavam. O mito é a mais antiga tentativa de apreensão da totalidade do mundo, com a finalidade de desvendar-lhe o sentido.
“A mitologia já continha, ainda que em estágio incipiente e fragmentário, a ciência e a filosofia, neste sentido podemos falar de uma “racionalidade do mito”, tanto no sentido de estruturas de pensamento, analisadas sobretudo por Lévi-Strauss, como no de “formas de conhecimento” do tipo representativo e simbólico e nas que há uma ordenação e sistematização do mundo” (Deus nas tradições filosóficas – Juan Antonio Estrada).
Nas palavras de Estrada, o mito tenta responder ao assombro do homem diante da realidade, dar-lhe um significado que permita amortizar o desamparo, a perplexidade e angústia ante o desconhecido, inominável e indefinível.
O homem luta por encontrar um sentido para o cosmo, por ordená-lo, defini-lo e classificá-lo, para fazer dele um lar com significação onde possa situar-se e integrar-se.    
Por volta do século VI e VII a.C, em Mileto, a mais florescente das cidades gregas da Jônia (localizada na bacia do mediterrâneo oriental, onde se localizavam numerosos entrepostos comerciais, encruzilhada de um sem número de influências culturais), surgiram os primeiros sábios, que a tradição posterior denominou de filósofos.
Entre eles Tales de Mileto, que recusou a hipótese dos mitos e procurou um elemento fundante da natureza do qual derivariam todas as coisas do mundo (ao considerar que em todas as coisas há, em alguma medida, água, elegeu-a como princípio de todas as coisas). Posteriormente, outros filósofos elegeram outros elementos fundantes como o fogo, a terra, o ar etc (por conta dessa busca pelo elemento natural fundante de tudo, ficaram conhecidos como os “físicos”).
Com isso, surgiu a filosofia: a cosmogonia foi substituída pela cosmologia (“kosmos” = ordem universal + “logia” = logos, racional).
A racionalidade substituindo o mito.
A filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade (do “kosmo”), é, portanto, um fato tipicamente grego.
Para os gregos, o ser humano é um microcosmo (parte íntima e ínfima do cosmo) que reproduz em si a perfeição do universo, ou seja é um fragmento de uma totalidade que o engloba. O cosmo é o marco referencial em que se integra o homem, submetido às suas leis gerais, numa integração orgânica.
Os princípios reguladores e formadores do macrocosmo serão observados na geração do homem, esse microcosmo.
Quando a experiência do mito entra em crise (com o surgimento da experiência da filosofia, no período pós-socrático) os deuses, habitantes privilegiados do cosmo, deixam de fazer parte da realidade e são substituídos pelo raciocínio lógico, racional.
O racionalismo grego (período pós-socrático, notadamente Sócrates, Platão e Aristóteles) foi um marco fundamental para a construção da ocidentalidade, uma ruptura com a antiga forma de lidar e pensar o mundo, ao separar a “natureza do homem” da “natureza do mundo”.
Diferentemente, os pensadores pré-socráticos (notadamente Parmênides e Heráclito) concebiam o homem como parte integrante e indissociável do Kosmo, do mundo.
Com isso se deu a grande, e lastimável, perda da nossa civilização que perdura até hoje: perda da noção de que participamos de uma unidade com o cosmo.

Deus (Teocentrismo)
As diversas influências das mitologias orientais se fazem sentir na cultura grega. A cosmogonia grega também se insere dentro da geração dos deuses para explicar o mundo e tem como ponto de partida o caos. A figura mitológica de Zeus, autoridade máxima divina, simboliza a ordem social e cósmica que vem superar a condição caótica do mundo
Por outro lado, em outra região do mundo antigo, a exemplo da Mesopotâmia, esses elementos da mitologia foram reformados para ajustá-los à concepção de um Deus próprio da experiência judaica. O que distingue o judaísmo do naturalismo, próprio dos mitos das regiões vizinhas, é o caráter dialogal do homem que entra em uma relação privilegiada com Deus e não mais com a natureza. O Deus experimentado na história do povo é o Deus universal, de todos e do Kosmo. Em Israel há uma transformação que rompe com os elementos fundamentais do mito, o deus judaico (diferentemente dos deuses gregos) transcende ao homem e ao mundo.
A separação entre Deus, mundo e homem rompe a fusão e a participação dos deuses mitológicos no mundo natural, desdivinizando e dessacralizando a natureza.   
Aqui se abre o dualismo entre o natural e o sobrenatural (na mitologia grega tanto os homens como os deuses eram parte integrantes do cosmo).
Com o advento do cristianismo, a experiência do mito já estava superada, tanto pela tradição judaica como pela filosofia grega.      
O advento do Cristianismo, no ocidente, veio em resposta a uma expectativa da humanidade à qual a filosofia e a razão não mais conseguiam satisfazer, dando lugar a uma visão “teocêntrica” do mundo: Deus é perfeição, o criador de tudo que existe no mundo, fundamento de toda a realidade.  
A visão grega de um cosmos lógico e harmonioso foi substituída por uma visão divina.
A doutrina cristã vem se apresentar como a passagem de uma concepção cósmica de mundo (grega), na qual não somos senão um pequeno fragmento anônimo de uma totalidade que nos engloba e nos ultrapassa, para uma concepção divina, na qual contamos com a atenção pessoal, individual, singular de um Deus, que no antigo testamento nos tiraniza (autoritário) e que no novo testamento nos ama como um pai. 
Podemos considerar que a tradição religiosa judaica, da mesma forma que a racionalidade filosófica grega, tradições que se encarregaram de superar a experiência do mito, são as formadoras da nossa cultura greco-judaica-cristã. 

Homem (Antropocentrismo)
A filosofia moderna destituiu o “Kosmos” e Deus, substituindo-os pelo homem (o sujeito, a consciência, como a instância privilegiada que dá sentido à realidade). O homem começou a ver o mundo (egocentricamente) por seus próprios olhos mortais e imperfeitos. 
O mundo moderno é inteiramente forjado pelos seres humanos e para seu proveito. Longe de ser um fragmento de uma totalidade, ou criatura de Deus, o homem torna-se um fim em si (entra em cena o subjetivismo).
“O homem passa a se perceber como a finalidade da natureza, arrancando-a e com ela vestindo-se” (Começo conjectural da história humana – Kant).
A natureza e os animais passaram a ser considerados como meios e instrumentos colocados à disposição da vontade do homem para o sucesso dos seus propósitos.

II - Alguns conceitos essenciais à compreensão do texto

a) Metafísica

O título “metafísica” foi, ao que parece, criado por Andronico de Rodes, undécimo sucessor de Aristóteles na direção do Liceu (escola fundada por Aristóteles em Atenas), que por ocasião de uma compilação e ordenação do legado dos escritos de Aristóteles, agrupou-os tematicamente em lógica, física e ética. Não podendo enquadrar certos escritos nem na Lógica, nem na Física, nem na Ética, lhes deu apenas o nome de ordem, ou seja, os livros que nas prateleiras estavam colocados “depois” dos Livros da Física: metá tá physiká.
Posteriormente, adquiriu o sentido de designar os livros que se ocupam do que vai “além” do objeto da física (um saber que não busca investigar o que é compreendido pela experiência sensível, mas o supra-sensível), que propõe um conhecimento que ultrapasse toda particularidade dos entes físicos para compreender o que constitui o seu princípio, o seu fundamento. “É uma ciência que se encontra de algum modo fora, quer dizer para além do domínio da física” (Crítica da Razão Pura de Kant).
Ou seja, passou a indicar o conteúdo da obra
Os primeiros passos do que veio a se chamar filosofia (anteriormente ao modo metafísico de conceber o mundo) foram dados pelos pensadores gregos anteriores a Sócrates (período grego originário), tais como Anaximandro, Heráclito e Parmênides.
Heráclito compreendia o mundo como Kosmos (harmonia): a totalidade de tudo que é (não como se apresentaria, posteriormente na metafísica, como o conjunto das coisas existentes, o somatório de todos os entes). Para Heráclito, o saber consiste em compreender que tudo é um, tudo se harmoniza na totalidade do Kosmos.
A fim de compreender o fundamento essencial do que aparece, Sócrates formula a questão “o que é o ente?” que doravante, com Platão e Aristóteles, passa a ser a questão que caracteriza a investigação filosófica.
Com Platão e Aristóteles (período grego clássico), inaugura-se a metafísica. Esses pensadores acreditaram ter encontrado a essência das coisas concretas (considerada como o ser dos entes, seu núcleo permanente e imutável, que serve de modelo e de molde aos seus atributos contingentes, perecíveis e mutáveis).
Platão concebe uma doutrina que busca determinar “o que é” que, ultrapassando tudo que aparece, tudo que por nascer e perecer não pode ser conhecido em sua identidade essencial, constitui o fundamento primeiro e original de todo aparecer, a sua verdade universal.
Em suma, A filosofia como metafísica, afirmada por Platão e reafirmada por Aristóteles, separa o homem e o mundo, e mais tarde, com Descartes, se radicaliza com a transformação do mundo em objeto diante de um sujeito, e a verdade permanece na dependência da “adequação” do mundo ao sujeito.
Heidegger quer devolver à filosofia a sua dimensão originária, reconduzir o logos filosófico ao seu solo verdadeiro, onde se abriga a unidade indivisa do homem e do mundo.
Para Heidegger a metafísica, desde sempre, contrapôs o pensar ao ser na dicotomia sujeito e objeto: o ser é o objeto, o pensar é o sujeito. Ao investigar a unidade originária de ser e pensar (mundo e homem), Heidegger busca regressar à compreensão pré-metafísica (pré-socrática) da relação do homem com o mundo; o seu propósito é investigar a pressuposição normativa da metafísica de que a realidade se estrutura dicotomicamente numa relação entre o interno (o sujeito) e o externo (o objeto), a fim de demonstrar a unidade entre pensar e ser, entre homem e mundo.  
O termo fundamental que para Platão e Aristóteles designava o ser do ente era “Ousia” (o que está constantemente presente; presença constante).
A metafísica é, portanto, o discurso sobre a essência dos entes, sobre a natureza última da realidade. 
Os gregos denominavam entes tudo que é no cosmo (o próprio mundo, a natureza, deuses, homens, palavras, a beleza, a terra, o céu, as estrelas, os animais, os rios, o copo, a mesa, a árvore), enfim, todas as coisas.
A metafísica encontra-se enraizada no próprio sentido da cultura ocidental. Somos todos metafísicos, independentemente de nossas crenças e ideologia, daí, como já foi dito, nossa dificuldade em compreendermos a proposta heideggeriana. Até hoje, a filosofia (ocidental) explica a realidade através de uma perspectiva metafísica.
A dúvida a ser levantada é se a metafísica consegue explicar o mundo real em que vivemos, ou se apenas cria outro mundo afastado da nossa realidade concreta.
A grande tradição filosófica do Ocidente, desde Platão e Aristóteles a Santo Agostinho e Tomás de Aquino, desde Descartes, Espinosa e Hegel, move-se no âmbito do pensamento metafísico.
A história da metafísica é a história da subjetividade.
Heidegger parte daí e apresenta, através da sua analítica existencial (que veremos mais tarde), uma proposta de superação da concepção metafísica essencialista da realidade.

b) Essência
Sócrates que contribuiu para a filosofia com o conceito ou definição: “... estava preocupado com questões de ética, deixando de lado o mundo da natureza como um todo, buscando o universal nestas questões éticas, e ocupando-se pela primeira vez das definições ...” (Metafísica, Aristóteles).
Sócrates buscou captar os conceitos gerais, as definições universais que servem para exprimir uma qualidade ou valor, limitando-se ao domínio da moral (o que é a verdade, a coragem, o bem, o belo, o justo etc.), reduzindo-os a abstrações da realidade (modelos perfeitos a partir do qual cada coisa se apresenta no mundo sensível).
Conceito é o pensamento, afastado de todos os sentidos (sensações: visão, tato, olfato, paladar), através do qual percebemos as coisas do mundo. O conceito, através do pensamento, nos aproxima da essência de cada coisa, servindo de modelo para as coisas concretas que são contingentes, perecíveis e mutáveis.
Segundo Aristóteles, “... duas coisas podem ser atribuídas a Sócrates: argumentos indutivos e definição universal, ambos dizendo respeito ao ponto de partida do conhecimento. Mas Sócrates não considerou os universais ou definições como existindo à parte, eles (os platônicos), entretanto, atribuíam-lhes existência separada e os chamaram Ideias” (Metafísica, Aristóteles).
Platão ampliou o uso do conceito para além das questões éticas, daí resultando a intuição intelectual denominada “ideia”.
Platão estabeleceu a separação completa entre a essência (a forma perfeita que cada ideia exprime), que existe separada no mundo das ideias, e os seres sensíveis e imperfeitos (que vivem no mundo material, terreno).
As “ideias” são concebidas como seres transcendentes ao mundo sensível (suprassensíveis), que tem existência própria e mais real que os seres concretos, porque é pela realidade das Ideias (seres essenciais) que se explica a realidade dos entes (seres sensíveis).   
Platão, ao construir a sua hipótese do mundo das Ideias, busca uma convergência entre o mundo metafórico das Ideias e o mundo dos mortais, através da universalização e a particularização.
Nesse pensamento, “ideia” é conceito, definição, perfeição, permanência, unidade, essência, ser, ordem e harmonia, universal; matéria é imperfeição, mutação, singularização, acidente, aparência, desordem e desequilíbrio.
As “ideias” são seres perfeitos que existem num mundo separado do mundo sensível imperfeito.
Em suma, a teoria platônica das “ideias” foi o primeiro esforço da razão no sentido de arrancar a ciência da empiria do mundo dos sentidos, com a finalidade de edificar uma teoria do conhecimento (importantíssima para a história da ciência) com base no que é estável, permanente e estabelecer a segurança necessária à universalidade das leis da natureza, condição de possibilidade da ciência.
Aristóteles, em objeção ao seu mestre (Platão), considerou que os conceitos universais, essências inteligíveis ou “ideias”, não esclareciam coerentemente o problema “do princípio e da causa”, ou seja, não eram explicações suficientes da realidade sensível.
Argumentou que não era possível separar as essências dos seres sensíveis, ou seja, a filosofia de Aristóteles censura a separação da forma (“ideia”) e da matéria. Razão pela qual se empenhou em trazer as ideias do lugar aparte (mundo das Ideias), que Platão as tinha colocado, para fundi-las dentro da realidade sensível das coisas.
Para a metafísica de Aristóteles, esses dois mundos (inteligível e sensível) estão fundidos na substância da coisa real (que é composta de essência + atributos acidentais).
Aristóteles, no seu livro Metafísica, define “acidente” como: “Aquilo que pertence a um ser e pode ser afirmado dele verazmente, mas não lhe é necessário nem constante”, ou seja, não é essencial. 
Apesar de tudo, Aristóteles não eliminou a dualidade platônica - Ideia (essência) / matéria (ente) - apenas a transferiu para o interior da substância ao considerar que todas as coisas resultam do composto de matéria (acidentes) e forma (essência).
Portanto, a dualidade, como forma de pensar o mundo, continuou imperando.
“Sócrates é para Nietzsche o modelo, o paradigma da forma de realidade que será triunfante no Ocidente, ou seja, a forma de racionalidade científica, e, por conseguinte, Sócrates e Platão são os responsáveis pela identificação entre o verdadeiro, o belo e o bem. Então, só é bom e belo aquilo que é racional, daí o famoso predomínio da racionalidade sobre as outras dimensões da cultura ... Sócrates é a figura emblemática da racionalidade lógica ... nesse sentido, a civilização grega, a cultura grega antiga, aparece como uma espécie de paradigma da própria modernidade européia”. (Sofia – Revista de filosofia vol.IX “Um diálogo acerca do pensamento de Nietzsche” – Oswaldo Giacóia).  
“A idéia de estabilidade do “ser” funda o mundo da totalização racionalizante...no fim da época que inicia com Platão e chega até Nietzsche, que pensa o “ser” como estabilização, como objetividade, existe o mundo totalitário, o mundo de Chaplin que aperta parafusos...Pensar no “ser” como estabilidade objetiva significa renunciar à própria existência de seres livres” (Gianni Vattimo, “Metamorfoses da cultura contemporânea” – Diversos autores).
   

c) Dualidade
A história da metafísica, que se confunde com a história da filosofia ocidental, caracteriza-se pela fenda que se abriu entre o que era considerado permanente (a essência), e o que aparece aos sentidos, o que é acidental, não essencial (ente).
Para a tradição metafísica:
- no âmbito superior (inteligível, transcendente, sublime, permanente, perfeito) habita o ser, a essência que tudo molda, define, comanda, que traça previamente o modo de agir e de ser de todas as coisas no mundo;
- no âmbito inferior (mundano, sensível, imperfeito, concreto, mutável) encontra-se o ente, todas as coisas que constituem a realidade sensível.
Essa concepção atinge o seu auge no mundo moderno (cartesiano), com a cisão entre sujeito e objeto. O dualismo das essências pensante (Res-cogito) e das coisas no mundo (Res-extensa)

A Dualidade cartesiana (o sujeito como essência de tudo)
Com Descartes consuma-se o período de plena realização da dualidade metafísica. Com o “ego cogito” (eu penso) de Descartes, foi atingido, segundo Hegel, o fundamento absoluto, ou seja, o “sub-jectum”*, o cerne, o fundamento, o princípio causal, a essência de tudo.
* O que está lançado (“jectum”) e que se encontra sob (“sub”) tudo que é acidental (não essencial), que se encontra no âmago (o essencial).

“Sou uma substância cuja essência ou natureza é pensar” (Descartes).
Temos aí a repetição da dualidade platônica: o acidente (o mundo sensível) e a essência (o inteligível).
O que Descartes fez foi tornar o “eu”, do “ego cogito” (eu penso), o sujeito insigne em relação ao qual, exclusivamente, as outras coisas se determinam enquanto tais.
O homem se torna um ser a partir do qual todo o resto no mundo dos entes pode ser dominado e usado para seus propósitos. 
Descartes promoveu a autonomia do sujeito em relação ao mundo, considerando o pensamento como fundamento de tudo (a imagem que construiu do mundo foi uma imagem elaborada pela consciência).
O racionalismo cartesiano instaura a “filosofia da consciência”.

d) Consciência, realidade e representação
Anteriormente a Descartes (a filosofia aristotélico-tomista) predominava uma teoria realista do conhecimento: é das coisas para o intelecto que segue a trajetória do conhecimento. A representação é apenas o reflexo dos objetos na mente, ou seja, a transfiguração abstrata do mundo material.
Em Descartes o que ocorre é o inverso (racionalismo): é do intelecto para as coisas que segue a trajetória do conhecimento, ou seja, parte-se das idéias e procura nelas os indicadores que atestarão que existe na realidade algo que lhes corresponde. Os conteúdos mentais não são considerados apenas reflexos das coisas, pois sua realidade está assegurada independentemente de serem confrontados com algum conteúdo da experiência sensível.
O axioma fundamental do pensamento moderno é: “penso, logo existo”. Com este princípio, Descartes promoveu a autonomia do sujeito, estabelecendo o mundo como objetividade (o pensamento se tornou consciência que conhece a realidade ao constituí-la, representá-la, nos objetos).
A noção de representação tem um papel central no pensamento ocidental moderno ao separar o sujeito do objeto, o homem do mundo (sobretudo no racionalismo cartesiano e na filosofia da consciência).
A representação é a operação pela qual a mente tem presente em si mesma uma ideia ou um conceito que corresponde a um objeto externo (a representação de uma árvore é o referente da coisa “árvore em geral”).
A mente re-apresenta a “árvore em geral” para verificar a autenticidade da árvore real observada em determinado momento num pasto. Se esta conferir com a idéia de árvore arquivada na consciência, então se trata de uma autêntica árvore. Se não conferir, é uma ilusão.
A razão cartesiana instaura o ideal da certeza, fixa a verdade. Representar significa: assegurar-se, garantir como verdade, o que se fixou a partir de si.
A representação não se limita a contemplar o ente dado, na verdade ela se apossa da realidade para garantir a imutabilidade, a permanência do ente observado. 

e) Heidegger a desconstrução da metafísica - representação e existência.
O mundo não é uma representação (uma abstração na mente do homem), é um acontecimento no vivido (uma múltipla e constante possibilidade de ser no mundo, um ‘poder-ser’).
A diferença fundamental entre o cartesianismo (base da filosofia moderna) e o pensamento heideggeriano (proposta de desconstrução da metafísica moderna) está no modo de compreender as correlações entre homem e mundo (homem e realidade):
- em Descartes essas correlações são compreendidas como determinação do sujeito.
O “Subjectum” (fundamento da realidade) determina os entes como algo já dado, permanente, preciso, que não pode ser outra coisa além do que está representado na mente do sujeito. O que autoriza ao homem se julgar o centro, o eixo, o dono do mundo, aquele que pode se servir como quiser da natureza.  
O pensamento moderno talvez seja mais fácil de ser compreendido por nós, pelo fato de estarmos mais próximo dele e por sermos ainda hoje, de certo modo, herdeiros dessa tradição.
Pela mesma razão, é o que dificulta sobremaneira a nossa capacidade de compreendermos a proposta revolucionária de Heidegger (que com a interpretação da verdade como revelação colocou uma nova luz num dos antigos termos básicos da filosofia) que apresentou a verdade em sua originalidade, num ponto de vista além de qualquer subjetivismo, pois, para tanto, se faz necessário mudarmos radicalmente todo o nosso modo ocidental de ver e pensar o mundo.
Para nós o conceito de moderno está relacionado ao “novo”, àquilo que rompe com a tradição. Mas não é o que pensa Heidegger.
- em Heidegger as correlações entre homem e mundo são compreendidas como existenciais.
A des-construção desse modo tradicional de pensar o mundo é necessária para abrir espaço para um novo modo de pensar a realidade (não mais como representação). A tarefa da analítica existencial de Heidegger é arrancar o homem dessa compreensão metafísica (aprofundada pelo cartesianismo) que ainda hoje não foi superada.
A sua “analítica existencial” se posiciona num âmbito radicalmente diferente da metafísica cartesiana (que fecha e aprisiona a realidade em uma representação). Para Heidegger, a realidade se funda em relações existenciais (“ex-istência”/abertura para fora, para o mundo).
A realidade não é mais tratada como uma certeza, como representação inflexível que se forma no interior (na consciência) do sujeito, mas como algo flexível (o “poder ser”), aberto às múltiplas possibilidades de se a-presentar no mundo (se tornar presente).

III - Do cartesianismo à analítica existencial de Heidegger

Descartes
O Renascimento (séc.XV e XVI) é, historicamente, um período de transição entre a idade média e a moderna.
Foi uma época de profundas transformações na visão de mundo do homem ocidental. Após mais de dez séculos de hegemonia do pensamento teocêntrico medieval por muitos considerado como o período do “obscurantismo” (embora, contestado por outros tantos), o modo de ser da antiguidade Greco-romana renasce através de pensadores e artistas (daí a denominação “Renascimento”).
Essa efervescência, que caracteriza a atmosfera intelectual do Renascimento, traz consigo a rejeição das idéias até então vigentes e que estiveram garantidas, sobretudo, pelo peso de autoridades (religiosas e feudais) agora contestadas. Tudo é sacudido: a unidade política, as convicções religiosas, os dogmas científico. Todas essas mudanças geram uma atmosfera de descrença e de dúvida.       
Montaigne (segunda metade do séc. XVI) é a expressão desse clima de ceticismo, ao ressaltar a influência de fatores pessoais, sociais e culturais sobre as idéias. Conclui que só há opiniões, e não verdades, nesse mundo incerto.
Em tudo, a aspiração de universalidade (de uma verdade essencial) se choca com a variabilidade dos costumes, das opiniões e das crenças. Portanto, não há como buscar a certeza em quaisquer das afirmações humanas, o conhecimento é relativo
A observação da variabilidade das opiniões e a constatação da fragilidade do conhecimento sensível foram razões que levaram Descartes (séc. XVII) a propor o seu “método da dúvida”, uma vez que se fazia necessário algum grau de certeza sobre o qual a ciência se apoiasse, para conduzi-la à descoberta de verdades permanentes e irretorquíveis. Ou seja, era preciso achar um método que conduzisse a ciência pelo caminho da verdade.   
O Discurso do Método, publicado em 1637, é a obra inaugural da filosofia moderna, na qual Descartes expôs a sua preocupação central, que residia no “como conhecermos”, como podemos ter acesso a idéias verdadeiras que fossem imunes ao erro quando perseguidas segundo um procedimento metódico, sistemático. Ele se voltava contra todo pré-conhecimento, todo pré-conceito, pois a maneira mediante a qual pensamos nos induz frequentemente ao erro, à falsidade, à mera aceitação do senso comum, daquelas ideias que foram sedimentadas no nosso modo habitual de pensar.      
Para tanto, Descartes colocou tudo que existe em dúvida. A obsessão de Descartes era não se deixar enganar por algo que não fosse verdade, para, desse modo, encontrar aquilo que fosse o verdadeiro fundamento: “Enquanto eu queria pensar que tudo era falso, era necessário que eu, ao pensar, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade ‘eu penso, logo existo’ era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que poderia aceitá-la, sem escrúpulos, como o primeiro princípio da filosofia que procurava ... compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar ... ainda que o corpo nada fosse, a alma não deixaria de ser tudo o que ela é” (Descartes, Discurso do método).    
Diante disso, erigiu a consciência como a primeira certeza que racionalmente podemos admitir.
Para Descartes o homem não é senão uma res cogitans: coisa pensante. Entretanto, o eu (sujeito), como única certeza, ficou isolado das demais coisas do mundo (solipsismo/solidão/ isolamento do sujeito em relação ao mundo). Se a consciência individual fechada em si mesma não possibilita nenhum contato com o mundo, como então explicar a existência do mundo?
Mas, para que a ciência fosse possível (a genuína preocupação cartesiana, pois a ciência só existe na certeza) o mundo deveria, também, ser uma certeza, pois, ciência é o conhecimento empírico que o sujeito obtém do mundo. Portanto, para estabelecer o mundo como certeza, Descartes utilizou um artifício: a idéia de Deus.
“A dúvida paira sobre todas as Meditações até a sexta meditação, isto é, até que a realidade do mundo seja reencontrada graças à veracidade divina”. (Béatrice Dessain – “Winnicott ilusão ou verdade”). 
Descartes concebeu Deus de maneira não religiosa em sua filosofia. Para ele, chegar a Deus, mesmo alegando fé religiosa, era apenas uma exigência da razão, na medida em que tudo o que existe, não sendo uma causa de si mesmo, tem de provir de algo mais perfeito. Esse ser ideal, metafísico, seria Deus.
A metafísica, que estabelecia o conhecimento de Deus e de si mesmo, era condição para encontrar “por esse caminho” os fundamentos da física (da realidade do mundo).
“O pensamento metafísico de Descartes se desenvolveu consideravelmente... essa metafísica é secundária para ele, pois seu objetivo é garantir os fundamentos da física, já que esta ocupou a maior parte de seu tempo” (Descartes -  Geneviève Rodis-Lewis)
A certeza da existência do mundo é obtida a partir da idéia de Deus, seu criador.
Assim, a ciência estava garantida como certeza, ou seja, sua condição de possibilidade estava garantida em Deus (causa da existência do sujeito e do mundo), ponte que ligou o homem ao mundo.
“Apesar de tudo, a meditação cartesiana não conseguiu desvendar o mistério de nossa existência concreta, viva. Ao separar a mente do corpo (o pensamento do mundo sensível), produziu uma abstração. Afinal, a vida encarnada é sempre concreta, pois não há pensamento que não conte com a experiência sensível” (Corpo e Mente - Silvana de Souza Ramos, tratando da “Fenomenologia” de Merleau-Ponty).

Kant
O pensamento kantiano, em uma época impregnada de fervor científico, tem presente a ciência exata emergente na Idade Moderna e que se vai impondo, progressivamente, a todos os domínios do real.
A matemática e a lógica, como afirmado na Crítica da Razão Pura (publicada por Kant em 1781), já entre os gregos tinham iniciado o caminho seguro da ciência, e no século XVII a física, também, começara a trilhar a mesma via, alcançando a perfeição nos Princípios de Filosofia Natural de Newton. A filosofia necessitaria se elevar, por sua vez, a um estatuto científico que lhe conferisse o rigor das demais ciências.
Com Descartes já se pretendera construir a filosofia sobre um fundamento (o cogito), a partir do qual se deduziriam, por um discurso à maneira dos matemáticos, todas as outras verdades do sistema.
Kant afirma que na Idade Moderna a filosofia passa por três fases:
A dogmática, de que é modelo o sistema de Wolff; a cética representada principalmente por Hume; e a crítica, que ele próprio inaugura.
No período dogmático cada metafísica apresenta as suas teses como algo que não pode ser objeto de dúvida. Ora, a uma filosofia dogmática opõe-se outras filosofias, cujas teses também são dogmáticas e daí a luta entre sistemas, degenerando na anarquia que correspondeu à fase cética.
Com Wolff atingimos o auge do racionalismo dogmático, a filosofia transforma-se numa ciência cujo método não difere do matemático.
É esse método matemático-cartesiano de Wolff que vai ser abordado pela crítica empirista que culmina no ceticismo de David Hume - empirista inglês do século XVIII (Alexandre F. Morujão – Introdução à Crítica da Razão Pura, edição portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian).
Era pela análise das noções a priori do espírito, ou das idéias inatas, que o racionalismo de Descartes, de Leibniz e de Wolff pretendia atingir verdades absolutas e constituir uma metafísica. A crítica de David Hume persuadiu Kant de que era necessário abandonar o dogmatismo corroído (“Confesso abertamente haver sido a advertência de David Hume que, já lá vão muitos anos, pela primeira vez me despertou de meu sono dogmático e incutiu as minhas pesquisas no domínio da filosofia especulativa orientação inteiramente diferente)” (Kant, Prolegômenos, Prefácio).
Contudo, Kant não alimenta a menor simpatia pelos céticos, pois cometem o erro de professar pela metafísica uma “indiferença por um gênero de pesquisas cujo objeto não poderia ser indiferente à natureza humana” (Kant).  
“Kant criticou tanto o realismo quanto o idealismo dogmático, negando seja a tese que afirma - sem a necessária crítica – a realidade objetiva dos objetos do conhecimento, cuja existência independeria do sujeito, seja a que sustenta a idealidade desses objetos, concebendo-os – também acriticamente – como condicionado por elementos inerentes ao sujeito.      
Para Kant, a forma de todo conhecimento depende de elementos a priori do aparelho cognitivo humano, as formas puras da sensibilidade: o espaço e o tempo” (Heidegger urgente, Introdução a um novo pensar – Oswaldo Giacoia).    
Kant (séc XVIII) torna-se um marco (uma linha divisória) entre o
pensamento antigo e medieval e o pensamento moderno.
Os filósofos medievais (cristãos) afirmavam que podemos conhecer a verdade (a realidade) desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no tocante às verdades últimas e principais.
Portanto, a primeira tarefa dos modernos foi a de separar fé de razão, o que Descartes realizou com grande precisão.
O problema do conhecimento torna-se crucial e a filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer (uma teoria do conhecimento).
De Platão, passando por Aristóteles, até a cisão empirismo/racionalismo, os pensadores já se vêem dilacerados pela dualidade irredutível do conhecimento humano cindido nas duas vertentes da sensibilidade e da razão.
Assim como Aristóteles (realidade) diferia de Platão (idéias), Locke (empirista) diferia de Descartes (racionalista).
Platão e Descartes afastam o conhecimento sensível (que é baseado na experiência) do conhecimento racional (que é puramente intelectual). Aristóteles e Locke consideram que o conhecimento se realiza por graus contínuos, partindo da sensação até chegar às idéias.
Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da teoria do conhecimento: empirismo e racionalismo.
Para o racionalismo, a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão operando por si mesma, sem o auxílio da experiência sensível e controlando a própria experiência sensível.
Para o empirismo, a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível, responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da própria razão.    
Essas duas vertentes começam a desenhar-se ao fim da Idade Média e na idade moderna entrecruzam-se em Kant.
Para ele o nosso conhecimento dos objetos depende do sujeito conhecente, pelo menos tanto quanto depende do objeto conhecido. Esta é a famosa revolução copernicana que Kant empreendeu na filosofia. 
A resposta aos problemas do racionalismo e do empirismo oferecida por Kant é conhecida como “revolução copernicana”, em analogia à revolução causada pela teoria de Copérnico.
As tradições antiga e medieval (geocentrismo) consideravam que a Terra era o centro do Universo e que todos os planetas (a Lua e o Sol eram considerados planetas) giravam em torno da Terra. A revolução copernicana desmentiu a teoria geocêntrica ao afirmar que o centro do Universo não é a Terra, que como todos os outros planetas giram em torno do Sol, que não é um planeta, mas uma estrela (Copérnico afirma o sistema heliocêntrico).
“Para Kant, os representantes das duas vertentes do pensamento (empiristas e racionalistas) parecem ser como os astrônomos geocêntricos, ao reduzir tudo a um centro que não é verdadeiro.
Qual o engano dos pensadores? Não indagar o que é a razão (racionalistas) e o que ela pode e o que não pode conhecer, como, também, o que é a experiência (empiristas) e o que ela pode e não pode conhecer.
Em vez de procurar saber o que é a verdade, esses pensadores fizeram o conhecimento girar em torno das suas hipóteses de pensamento.
Em vez de colocar o seu pensamento no centro do conhecimento, comecemos a perguntar quais são as condições para que haja um conhecimento verdadeiro e como a razão e a experiência se relacionam” (baseado no livro Convite à filosofia – Marilena Chaui).  
“A ontologia clássica do conhecimento se assenta sobre uma dualidade irredutível do conhecimento sensitivo e do conhecimento intelectivo. Entretanto, negando esta dualidade, o mundo dá-se ao homem na sua dupla dimensão sensível e racional, e é só na interação com o mundo que o homem se conhece como ser sensível e racional e que o mundo se manifesta na sua inteligibilidade e racionalidade.
A inteligência capta o inteligível no sensível. O mundo não se dá primeiro à inteligência e depois aos sentidos. O dado inicial é o mundo real que tanto os sentidos como o entendimento apreendem num único ato complexo.
É evidente que a época de pensamento que vai de Aristóteles até a rotura empirismo-realismo se vê já muitas vezes dilacerada pela ambigüidade fundamental do conhecimento humano cindido nas duas vertentes da sensibilidade e da razão...” (baseado no livro de  Celestino Pires: Os pressupostos de Kant na solução do problema da metafísica – cadernos da UNB).
  
O idealismo tanscendental

Kant diz que existe a intuição pura (um “a priori”, inato). Quando me abstraio de todo o mundo sensível o que resta? O espaço e o tempo, pois nada posso representar que não esteja no espaço (altura, largura e profundidade) e no tempo (sucessão). A intuição pura se apresentará como puro espaço e tempo.
Não podemos pensar coisas fora do espaço e do tempo, por isso é que Kant concebeu que espaço e tempo são algo dado a priori, isto é, antes de toda experiência.
Para Kant a intuição pura nos é inata. Pertence à nossa natureza ter intuição pura do espaço e do tempo. 
Kant diz: “sou bombardeado por uma poeira de sensações, em si mesmo não organizadas, eu dou a elas uma primeira formatação a partir da intuição temporal e espacial”. ‘Organizar’ significa aqui tomar as coisas numa certa ordenação (nas relações do espaço e do tempo). As relações que me chegam recebem uma ordenação de espaço e tempo que não possuem em si mesmas...uma natureza desorganizada não me daria nada que estivesse, p.ex., ‘à esquerda de’, ‘acima de’ ou ‘antes de’, essas relações são formas ideais da intuição humana, são modos de organizar a percepção empírica e não algo que existiria nas coisas em si mesmas. O fato das coisas da natureza chegarem a mim através dos filtros espaciais e temporais da intuição pura faz com que as chame como aparecem para mim de fenômenos... portanto, fenômenos são as coisas como aparecem para mim e não como seriam em si mesmas, pois já chego a elas ordenando-as por essas formas que me são próprias, como óculos que tridimensionam (espacialmente) e unidimensionam (temporalmente) as coisas”.
Kant entendia que as coisas do mundo sensível somente poderiam ser conhecidas se organizadas “a priori” pelas intuições puras do homem que as organizava no espaço e no tempo. O espaço e o tempo não são entes autônomos, mas produtos inatos da mente humana.
Sem as intuições do espaço e do tempo não seria possível qualquer experiência sensível. Toda experiência sensível só pode dar-se no espaço e no tempo.
O espaço e o tempo são concepções do sujeito humano. Os fenômenos são objetos da nossa percepção, obra do sujeito, pois sem o sujeito (sua intuição pura “a priori” do espaço e do tempo) o objeto não pode existir. 
O conhecimento científico só é possível no plano fenomênico, o modo como as coisas aparecem ao sujeito, após terem sido “a priori” organizados, ordenados, por meio das intuições do espaço e do tempo.      
Para Kant, nós não podemos conhecer o real (“a coisa-em-si”), mas apenas seus fenômenos (o modo como a realidade nos aparece e é conhecida depois de ordenada pela intuição pura do sujeito, pelas intuições do espaço e do tempo), pois o conhecimento sensível nos apresenta as coisas como elas aparecem para o sujeito e não como são “em-si”, nos apresenta fenômenos, ou seja, as coisas como elas se manifestam ou aparecem para o sujeito.  
Um dos objetivos fundamentais da Crítica da razão pura (do uso da razão teórica no conhecimento da realidade) é precisamente estabelecer critérios de demarcação entre o que podemos legitimamente conhecer e as falsas pretensões ao conhecimento que nunca se realizam (o dogmatismo: pretensão de progredir apenas com um conhecimento puro baseado em conceitos, sem se indagar, contudo, como chegou a eles).
Em suma, estabelecer os limites da razão teórica e estabelecer os critérios de um conhecimento legítimo.  
Na Crítica Kant formula sua concepção de uma filosofia transcendental, isto é, uma investigação que não se ocupa tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer os objetos* (a filosofia transcendental, portanto, contém a teoria do conhecimento de Kant, ou seja, sua análise das condições de possibilidade do conhecimento, por meio da qual se pode estabelecer o limite entre a ciência e a pseudociência, distinguindo o uso cognitivo da razão, que efetivamente produz conhecimento do real, do meramente especulativo, próprio da filosofia especulativa).
Na experiência do conhecimento, para Kant, sujeito e objeto são termos relacionais que só podem ser considerados como parte da relação de conhecimento, e não autonomamente, separadamente (como no solipsismo cartesiano). “Só há objeto para o sujeito e só há sujeito se este se dirige ao objeto, se visa apreendê-lo” (Danilo Marcondes, “Iniciação à história da filosofia).
“Por conseguinte, surge que, entre o sujeito e o objeto do conhecimento, a oposição, longe de ser radical, atenua-se em prol de uma espécie de harmonia preestabelecida. A partir do momento em que uma relação se estabelece, ela instaura ao mesmo tempo o objeto conhecível e o sujeito conhecedor na qualidade de pólos não distintos, pois submetidos ambos às mesmas imposições da existência empírica”. (Béatrice Dessain – Winnicott ilusão ou verdade). Tal afirmação antecipa a nova relação entre sujeito e objeto proposta pela fenomenologia de Husserl, como veremos a seguir.

Referências bibliográficas: “Iniciação à história da filosofia” de Danilo Marcondes e “História da filosofia” de Giovanni Reale e Dario Antiseri.

O questionamento da filosofia da consciência

A partir do final do séc. XIX, alguns pensadores, refletindo sobre nosso modo de ser no mundo, criticaram a posição cartesiana de realidade (mundo como produto da consciência) e explicaram o ser humano por meio da experiência viva que o liga ao mundo sensível (idem – Silvana de Souza).
Entre esses pensadores consideraremos neste texto Husserl e Heidegger.

Husserl
Na tradição cartesiana a consciência é entendida como termos consciência de nós próprios (consciência de si), de nossas próprias idéias, ela não está direcionada diretamente às coisas de “fora” dela mesma (o mundo). Aqui a mente, com seu mundo “intramental”, lá fora, o mundo “extramental”, um isolado do outro
A fenomenologia de Husserl (final do século XIX), dando um passo além do “penso, logo existo” cartesiano, funda o conceito de intencionalidade, determinando a consciência como “eu penso algo”, pois, para uma consciência pensar é necessário que exista algo além dela (ligando sujeito e mundo). Todo pensamento é pensamento de algo.
Nesse momento de constitutiva excentricidade do ser humano estaria concretamente fundado seu caráter existencial – ex-sister – quer dizer, ter subsistência fora das causas. Não são as coisas que existem fora do pensamento, mas o pensamento que existe fora das coisas (Heidegger).    

Ao axioma cartesiano: “Só há realidade dada a uma consciência” (consciência de si, fechada em si), Husserl associa sua recíproca: “Só há consciência possível a partir de alguma coisa” (passa a reconhecer as coisas do mundo).
Cada experiência que nós temos é intencional, está direcionada a algo ou a outrem, ou seja, é essencialmente “consciência de” ou “experiência de”.
“Por intencionalidade deve-se entender que a consciência está sempre voltada para algo ... que ela é uma atividade constituída de atos como os de significar algo, perceber algo, imaginar algo, desejar algo, pensar algo, querer algo, agir algo, etc. ... (Creusa Capalbo, Fenomenologia e hermenêutica”
Hussel introduz o conceito de intencionalidade: um ato da consciência que cessa de ser uma interioridade fechada nela mesma (um sujeito isolado) para se abrir aos objetos do mundo.
A intencionalidade é “uma certa maneira” de “visar” (visar, não é ver sempre o mesmo, uma representação permanentemente gravada na consciência), é ver a mesma coisa, outra vez, de outra maneira, pois nada é sempre a mesma coisa a cada “visada”.
Cada “visada” é uma nova perspectiva do mesmo sempre em mutação. Para Husserl, a realidade é a possibilidade que se desvela (revela) em múltiplas perspectivas.   
O termo “fenomenologia” origina-se da união das palavras gregas phainomenon e logos. A primeira palavra foi definida por Husserl como “o que se mostra a si mesmo e por si mesmo” e não se refere a uma realidade outra (como uma abstração, uma idéia, uma essência, um transcendente, um além mundo). A segunda palavra significa “o que faz ver alguma coisa”, revela algo, mostra alguma coisa.
“Enquanto hoje em dia só se fala, em todos os lugares, de avaliações, de perícias, de ‘números que falam por si’, de ‘assinalar com um x’, como se afinal só a partir daí fosse possível uma avaliação das coisas e das pessoas, afirma-se aqui, na contracorrente desta anulação do sujeito, a idéia de que o valor de uma existência não se demonstra, não se prova, mas se experimenta”. (Béatrice Dessain – “Winnicott, ilusão ou verdade).
Para Husserl, como para Heidegger (assistente de Husserl na Universidade de Freibur e, posteriormente seu sucessor) a atitude fenomenologia se inicia pela descrição da experiência vivida que temos do real, procura “ir às coisas mesmas”, buscando seu sentido, abandonando a compreensão metafísica das coisas do mundo (O absoluto, o universal, a idéia, a essência, como nos gregos e medievais, ou representações elaboradas pela consciência do sujeito, como no cartesianismo).
Em suma, a fenomenologia revela, mostra, o que algo é realmente, “na multiplicidade de seus sentidos”. Não se trata de um método que elege um objeto de investigação para provar ou demonstrar a sua validade, a sua “verdade” científica.
Em seu livro “O que é metafísica?”, segundo a nota do tradutor Ernildo Stein, Heidegger arranca o leitor da imediatidade da postura natural em face das coisas e o leva a postura transcendental (pois, para ele, a fenomenologia é precisamente a arte de desvelar aquilo que, no comportamento cotidiano, nos ocultamos a nós mesmos: o exercício da transcendência), para mostrar que o homem não está simplesmente ao lado da pedra, da flor ou da estrela, mas que as envolve, estando também envolvido, pela compreensão numa estrutura referencial a partir da qual tomam sentido.
Esse modo de ser é a característica fundamental da existência humana, que lhe dá a distância do mundo natural (dos minerais e dos animais irracionais) e a faz transcender a cotidianeidade.    
                         
Heidegger
“Seria possível interpretar a experiência histórica do homem ocidental a partir de um outro modo de compreender o mundo? Acreditamos que sim. Um dos mais tenazes esforços da reflexão filosófica do nosso tempo consiste precisamente nessa outra maneira de conceber a felicidade humana e o significado da história da metafísica de Platão a Nietzsche: o autor desse esforço é Martin Heidegger” (José Guilherme Merquior – Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin).
Heidegger (séc. XX), considerou que a estrutura intencional husserliana ainda estava demasiadamente marcada pela distinção remanescente do sujeito e do objeto herdada das filosofias da consciência, razão pela qual rompeu com a fenomenologia de Husserl, substituindo-a por uma compreensão fundamentalmente diversa do que era, até então, pensada pela filosofia.
Para os primeiros pensadores gregos (pré-socráticos), que chamarei de pré-metafísicos (considerando que a metafísica, enquanto dualidade, surge com Platão), o cosmo não designa um ente, nem o simples somatório dos entes, mas “um modo de ser em seu conjunto” (o mundo, o Kosmos, não é simplesmente o somatório das coisas que se encontram presentes no mundo, mas uma unidade que, no seu conjunto, revela as partes, as coisas do mundo. Ao contrário do pensamento metafísico, não são as partes que constroem a unidade, mas a unidade que propicia as partes).
É esse modo de ser em seu conjunto, determinando (o sentido) do ente, que orienta o pensamento inovador, revolucionário, de Heidegger.
Para Heidegger, o fundamento da realidade não se dá na consciência (como representação, uma abstração, um universal, uma certeza), mas nas relações de co-pertinência que se estabelecem, a cada momento, entre homem e mundo (uma possibilidade aberta, um “poder ser”, uma incerteza).
Para Heidegger, não se pode compreender o homem e o mundo a partir da consciência e do problema da subjetividade a ele inerente, pois é somente a partir das suas relações com o mundo (significando todos os entes: a natureza, os animais irracionais e o próprio homem) que o homem constrói a sua realidade, a sua existência.
O homem não é um “ser para si”, não é primordialmente um “Eu” (uma consciência, uma racionalidade), o ser humano existe em co-pertencimento com o mundo e com o outro (é alteridade); o homem somente “é” no vínculo, na relação de unidade, que vai tecendo com o mundo e com o “outro”. É a partir dessas relações que o homem e o mundo adquirem sentido.
A alteridade se sobrepõe à subjetividade e à noção do ser como absoluto, quando o relativiza ao tecê-lo no conjunto das relações de um universo de seres.
O “outro” não significa o conjunto dos demais entes além de mim, do qual o “eu” se isolaria. O “outro” (enquanto alteridade), ao contrário, engloba a todos, dos quais ninguém (inclusive o homem) se diferencia propriamente, aqueles entre os quais também o homem está. 
O mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros (homens e natureza). O Ser é “ser-com” os outros.  
O “outro” aparece como “ser-junto” às coisas do mundo, por isso está aprioristicamente presente para mim, como eu próprio estou presente para mim. Esse laço (essa relação) de ser com o ser do “outro” é a estrutura da minha própria existência como ser-no-mundo.
É na con-juntura (“junto-com”) entre homem e mundo que se revela o sentido dos entes, que a realidade propriamente se a-presenta naquilo que verdadeiramente ela é.
O homem se abre à totalidade do mundo (à realidade) não através da consciência, do intelecto, mas das relações que constrói na sua existência, no seu vivido (sendo- no- mundo).
Não é a partir do homem (sua consciência) e das coisas já dados que as relações se definem (como na compreensão metafísica), mas, ao contrário, é através das relações, que se formam inesperadamente no vivido, que homem e mundo adquirem sentido.
Para Heidegger, o “mundo” é fenômeno e não um dado, um lugar, uma substância. O mundo não é um ajuntamento de entes simplesmente dado (uma estrela, uma pedra, um cão, um homem), mas o contexto onde “se dá” (acontece) uma grande rede de relações, na qual os entes (incluindo o próprio homem) adquirem o seu sentido (não por justaposição, mas numa unidade) na múltipla possibilidade de se “con-juntar”, de se relacionar, com as demais coisas (a conjuntura é sempre um acontecimento gerador de sentido).

Uma breve retrospectiva à metafísica de Aristóteles: em oposição explícita à concepção de inspiração platônica do “ser como gênero supremo”, como idéia, como um absoluto, Aristóteles irá formular a sua tese da pluralidade dos sentidos (acepções) do ser: “ O ente é tomado em múltiplas acepções, mas sempre relativamente a um termo único, a uma única natureza” (Livro IV da Metafísica, Aristóteles).
A partir daí, Heidegger coloca o problema da unidade do ser na multiplicidade de seus sentidos: “se o ente é expresso em múltiplos significados ... que quer dizer ser?” (Meu caminho para a fenomenologia –Heidegger).
Tomemos como exemplo o ente pedra. Em nosso modo cartesiano, racional, de ver o mundo, não damos conta de que uma pedra é muito mais do que simplesmente uma pedra.
Na perspectiva do pedreiro, a pedra é material de construção; na do garoto que tem um estilingue é brinquedo; para o alpinista é obstáculo, para Davi a arma com que matou Golias; para Carlos Drummond de Andrade, é poema; para Rodin é escultura.
Don Quixote (de Cervantes) nos ensina, quando critica o curto entendimento do seu fiel escudeiro Mambrino: “Isso que a ti parece uma bacia de barbeiro, me parece um elmo de Mambrino e a outro parecerá outra coisa”. Ou seja, para Quixote, a mesma coisa (o elmo de Mambrino e uma bacia de barbeiro, e um espelho de metal), em perspectivas diversas, pode se apresentar como coisas diferentes mesmo sendo a mesma coisa, pois, na sua visão rica em possibilidades (fenomenológicas), a mesma coisa pode ser outra coisa (inadmissível para a tradição metafísica).
Muitos são os mundos, muitas as perspectivas que organizam e con-juntam as coisas para lhes dar sentido. O próprio homem é um “ser-em-conjunção”. 
Nenhum ente “é” em si, simplesmente. A pedra em si simplesmente não forma sentido (não “é”). Os múltiplos significados da pedra se revelam, se formam, emergem nas diversas perspectivas, nos múltiplos modos como a pedra se relaciona com as demais coisas, e tão logo ela significa numa determinada perspectiva já se coloca aberta, disponível, para formar um novo sentido (“Os objetos não possuíam nomes especiais. Eram denominados segundo a disposição momentânea na qual flutuavam” – Auto de fé/O mundo na cabeça - Elias Canetti).
Embora a ciência saiba que objetivamente uma pedra compõe-se de tais e tais elementos físico-químicos, que apresentam esta ou aquela estrutura molecular, a realidade propriamente sempre lhe escapa, pois fica aprisionada no mero mineral (sua aparência imediata), no ente simplesmente dado.
A metafísica da consciência, da razão, paralisa em abstrações suas representações do real e, equivocadamente, acha que desse modo re-conhece (no sentido de tornar a conhecer a cada apresentação) sempre o real, que controla e domina a realidade. A presunção da razão é constituir parâmetros, paradigmas, para neles enquadrar o real (paralisar, dominar, a realidade).
Entender a consciência como o fundamento (a essência) do real é, afinal de contas conceber a consciência (o sujeito) como proprietária de todas as coisas da natureza.  
O caminhar moderno não trilha o caminho aberto, inesperado, da possibilidade, do “poder-ser”, mas o caminho já previamente decidido, dado, fechado, da utilidade e da funcionalidade, do “já-ser-para” uma finalidade.
Heidegger, des-construindo a metafísica da representação do real, propõe que todo real seja uma realização incessante e inesperada, que não se repete mais, pois quando se percebe o real numa determinada perspectiva ele já não é mais, já passou. O homem não tem como se apropriar da realidade, uma vez que o real é possibilidade inesperada, é a cada vez já outra coisa, se articulando em outra perspectiva (outro modo do real se revelar, se articular, se a-presentar). 

O “ser-no-mundo” e a “des-construção” da metafísica
A analítica existencial heideggeriana propõe algo totalmente diferente do pensamento metafísico, do pensamento moderno, cartesiano.
Só o homem vivo e concreto “existe”, porque na sua compreensão de “ser-no-mundo” com ele se relaciona e se abre em múltiplas e inimagináveis possibilidades de ser. Dos outros entes podemos dizer que simplesmente são (não “existem” no sentido do homem), porque programados biologicamente, não constroem o seu modo de ser.
O homem é o único ente que, se compreendendo sendo (tendo consciência de ser), é pura abertura (“ex”-istência), pura possibilidade, no sentido existencial, um “poder-ser-no-mundo” (Seminários de Zollikon – Da Projeção, pg. 202).
O homem é um ente inacabado, sempre em perpétua possibilidade de ser completamente (plenamente), um ser aberto para as potencialidades que brotam espontaneamente do mundo, e realizando-se, assim, em seu não-acabamento (contrariamente, a metafísica é a filosofia do pronto e acabado, do já dado, absoluto, permanente, fixo, sempre o mesmo na sua essência).           
Para Heidegger, nós somos entes privilegiados, por termos a possibilidade de levantar questões, questionar o mundo e a nós mesmos. Somos determinados pela existência e não pela determinação (conformação) biológica como os animais irracionais.
A palavra latina “existentia” é concebida na metafísica como expressão do simples fato de que algo é (o ente é simplesmente, e nada mais do que, aquilo que é no mundo). Os entes existem nesse contexto na medida em que se encontram efetivamente presentes e prontos no real, ou seja, uma realidade física que faz parte da natureza e que não tem história.
Entretanto, “existência”, no seu sentido heideggeriano, é designativa da dinâmica de realização própria do homem, do jamais concluído (somente na morte), do inacabado.
Foi de Dilthey que Heidegger reteve a idéia de que a vida se compreende a partir dela própria, da sua facticidade. Nos seus cursos iniciais, Heidegger não falava, ainda, senão da “vida na sua facticidade”, sendo que, posteriormente, renuncia ao vocabulário da “filosofia da vida” de Dilthey a favor do da “análise existencial”. Ou melhor, passou a tratar o ser do ente que somos nós (que conhecemos como vida humana) como uma existência cuja constituição fundamental (essencial) reside no “ser-no-mundo”.
Substituiu o conceito de vida fática, por existência (ser-no-mundo).
Portanto, o homem é o único ente que “não apenas é, como, também, existe”, porque seu modo de ser é a compreensão do ser, ou seja, o homem se sabe no sentido de ser.
Saber-se no sentido não significa que o homem dê o sentido ao real (o real não se explica meramente pelo homem), mas que o homem, enquanto “ser no mundo”, faz parte, está no sentido. Nós não criamos a realidade existente, pois a essência do seu existir nos ultrapassa.
Embora o ser não seja redutível ao homem, só há ser e sentido pelo homem que é o lugar onde a realidade se revela (a dinâmica de realização acontece no homem “sendo-no-mundo”).
Existe uma diferença entre o “Ser” (acontecimento, fundamento do existente, dinâmica de realização do homem) e o existente presente no mundo (o ente). Este (o ente) não esgota aquele (o Ser, como vimos no exemplo da pedra). O “Ser” transcende continuamente os entes dados. A única coisa que sabemos do “Ser” é que não é algo determinado, é uma possibilidade, um “vir-a-ser”, um “poder-ser”.
O homem não é apenas um sujeito para quem há um objeto, mas um Ser no ser (no ente que, também, somos), um Dasein (denominação utilizada por Heidegger e traduzido para o português como “ser-aí).
Tudo que poderá vir a ser no mundo está latente (guardado na sombra do nada), aguardando apenas uma conjuntura que lhe dê sentido (que o ponha a vigorar na forma de um ente qualquer).
 A maiúscula com que Heidegger grafa o “Ser” enquanto diverso de todo ente dado sublinha a essencial diferença entre ser e ente (a metafísica implica no primado da visão do ente sobre o Ser – Metafísica é uma visão do mundo como representação).
O ente é desprovido de “existência”, não é como o homem difusor de relações, só adquire sentido como referência de relações, pois o sentido sempre se dá através do homem na unidade de um “ser-com” as coisas do mundo.
Portanto, o fundamento da realidade não deve mais ser procurado na essência, na idéia, no conceito, nem na consciência, mas nas relações que se tecem na existência, no vivido, pois a realidade é possibilidade de acontecer em múltiplos modos de ser.
Para a metafísica, todas as coisas que existem (todos os entes, todos os seres que constituem o real) possuem uma natureza própria, permanente, uma essência que lhes é específica, esse modo de ser que preestabelece cada ente, define, traça previamente, o seu modo de agir e de ser no mundo.
Heidegger nega este modo de ser já dado, preestabelecido, e afirma que nenhum ente é simplesmente em si mesmo, muito menos o homem. O homem é um ente que constrói todas as suas determinações essenciais a partir das relações que experimenta com o espaço de realizações da sua vivência, da sua existência, da sua história.
Para Heidegger, o homem e mundo não são dois, nem se dão isoladamente, mas se dão em uma unidade fenomenológica (o “ser-no-mundo”), ou seja, quando se dá o fenômeno homem, se dá o fenômeno mundo e quando se dá o fenômeno mundo se dá o fenômeno homem (o que se dá é uma relação de co-pertencimento homem/mundo). O mundo é no homem, e o homem é no mundo.
Para Wilhelm Dilthey (pensador cujo trabalho, tanto quanto o de Husserl, ecoa fortemente na obra de Heidegger), o fundamento da realidade não é, como na metafísica, uma essência que traça previamente o destino do homem, ao contrário, a realidade é uma “conexão vital”, é uma ligação com a visão de mundo que caracteriza uma época (uma geração).
“Toda palavra, toda frase, todo gesto, toda obra de arte, ciência, religião, todo direito e todo fato histórico, só são compreensíveis porque um elemento comum articula aquilo que se exterioriza neles com aquele que compreende (o homem). A partir de tal comunhão, tudo aquilo que é compreendido porta em si por assim dizer a marca de algo conhecido. Nós vivemos numa atmosfera que nos envolve constantemente. Estamos mergulhados nela. Nós estamos por toda parte em casa, nesse mundo histórico e compreendido, nós compreendemos o sentido e a significação de tudo aquilo que nós mesmos somos a partir de um entretecimento (entrelaçamento numa trama, numa rede de relações) com esses pontos comuns”.
Diferentemente dos entes simplesmente dados, o homem é um ser histórico, existencial. O homem não é simplesmente natureza, é história.
Sua existência é um “poder-ser”, é abertura onde se dão múltiplas possibilidades no seu modo de ser (um modo de ser “existencial”, “ex-istens”).
Já o modo de ser do animal é a adaptação ao mundo (“bios”), pois essa é a sua única relação possível com o mundo, seu modo de ser já está determinado biologicamente.
O homem não é sub-stância (sub, embaixo, dentro), não pode ser visto simplesmente como um ente prisioneiro das determinações de uma essencialidade, como na metafísica. O ser humano é um projeto que vai se escrevendo contínua e inesperadamente na dinâmica de “poder-ser-no-mundo”.
A analítica existencial de Heidegger revelou um modo de olhar o mundo e o homem radicalmente novo, que contradisse profundamente todo o modo já arraigado de pensar metafisicamente, causando estranheza, não só no meio filosófico, como, também, entre os leigos que se interessam pela filosofia.  
A realidade não pode mais ser interpretada cosmocentricamente, teocentricamente ou antropocentricamente. Urge que a interpretemos fora dos padrões comuns a que estamos habituados, ou seja, que a interpretemos como um acontecimento cheio de possibilidades, inusitado, incomum: ex-centricamente (como não tendo um centro, mas sendo, apenas, numa teia de relações que compõe uma totalidade).

A ciência e a regionalização da realidade
A racionalidade no iluminismo, alvorecer da idade moderna, foi o marco de uma revolução filosófico-cultural (séc. XVII) que estimulou todo um modo de pensamento analítico (o conhecimento científico fragmentou-se: física, biologia, matemática, humanas, etc.). Em vez de ver as coisas inteiras, as pessoas dissecavam uma realidade complexa para estudar suas partes componentes.
A ciência experimental inicia-se com Galileu (final do século XVI) e Newton (século XVII) e começa definitivamente a desenvolver-se em meados do século XVIII. “... para progredir a ciência necessitava que os homens de ciência se especializassem ... o homem de ciência tem sido encerrado num campo de ocupação intelectual cada vez mais estreito ... o científico ia progressivamente perdendo contato com uma interpretação integral do universo” (A rebelião das massas – A barbárie do “especialismo”, Ortega y Gasset).
Surge o “especialista” que sabe quase tudo de quase nada. Vê a árvore, mas não percebe a floresta. Sabe muito bem seu mínimo rincão de universo, mas ignora basicamente todo o resto.
O perigo desta ciência especializada é a mecanização, pois esta desarticula o saber. Trabalha-se como uma máquina, desconhecendo o sentido e o resultado deste trabalho sobre os demais participantes do mundo: o próprio homem e a natureza.
“O especialismo, que tornou possível o progresso da ciência experimental durante um século, aproxima-se de uma etapa em que não poderá avançar por si mesmo ... o especialista ignora as condições históricas de sua perduração, isto é, como devem estar organizados a sociedade e o coração do homem ... É preocupante, para todo aquele que tenha uma idéia clara de do que é civilização, a idéia que sói faltar ao típico homem de ciência ... ele acredita que o a civilização está aí, simplesmente, como a crosta terrestre e a selva primigênea” (idem Ortega e Gasset).
A ciência ocupa-se unicamente dos entes, representando-os, repartindo suas regiões, experimentando, confirmando e prevendo seu comportamento.
A essência da ciência moderna é a objetivação do ente. A ciência moderna é fruto da metafísica cartesiana.
O que até hoje foi pensado, e posto em dúvida, pela metafísica nunca foi a totalidade do real, mas apenas aspectos, âmbitos, partes, regiões da realidade. A ciência toma como objeto do conhecimento apenas aspectos da realidade, que transformados em leis pretendem representar a verdade (as leis da física, da biologia, da cosmologia, o mesmo vale para a psicologia, sociologia, economia, para a política, para a estética, para a ética), mas que não passam de saberes parciais da realidade.
As ciências naturais e as ciências sociais discutem problemas limitados ao âmbito de sua competência (seu objeto), não se debruçam sobre o sentido geral da realidade. É por isso que, para as ciências exatas e para as ciências humanas, a filosofia se afigura como inútil para a produção de conhecimento, porque, aparentemente, nada produz de prático e útil em comparação com os resultados apresentados pela técnica, pela psicologia, pela economia e pela política.
A modernidade caracteriza uma época na qual as intervenções, as de-cisões (divisões, categorizações) do homem no mundo, o tem levado a um verdadeiro turbilhão caótico, pois perdemos a noção de integrantes de uma totalidade (a visão holística dos orientais).
A analítica existencial heideggeriana pensa mundo e homem como uma unidade indivisa. A ciência, por sua vez, refere-se a homem e mundo como uma totalidade somativa, de elementos que vão se juntando. 
A ciência clássica (âmbito do conhecimento) trabalha com um mundo fragmentado em objetos de investigação e compreensão, mas não alcança o sentido do todo (âmbito da filosofia e do pensamento).
Abro, aqui, um parêntese para tratar da teoria quântica como um referencial que (mudando o que deve ser mudado, para respeitar as diferenças de alcance da física em relação à filosofia) pode nos abrir uma janela para a compreensão de como a superação do paradigma cartesiano pode despontar uma nova interpretação da realidade como um fenômeno de totalidade. 
Niels Bohr (prêmio Nobel de física em 1922, um dos formuladores da física quântica), pesquisador importante na revisão dos fundamentos filosóficos da física e, por extensão, da ciência, propõe que os problemas da realidade e do conhecimento sejam compreendidos a partir de outra matriz, que possa rever, na física, o determinismo da Mecânica newtoniana e, na filosofia, a divisão cartesiana entre sujeito e objeto.
Um dos fundamentos da ciência moderna propõe a separação entre o observador e o observável na experiência científica, o que possibilita um processo mensuravelmente controlado, ou seja, que a manipulação do observável pelo observador (pesquisador), e a interação entre observador e observável, não modifique significativamente o valor da grandeza medida, isto é, não afete o observável.
A teoria quântica coloca em questão a separabilidade observador e observável, considerando que a perturbação envolvida no ato da medida não pode deixar de ser considerada.
O que antes era considerado como entidade isolada (como a metafísica tratou o ente) revela-se fundamentalmente por meio de relações, interconexões e correlações, e dessa forma, a teoria quântica colocou em questão a concepção da previsibilidade determinística, introduzindo a questão probabilística como essencial no caso do micro-universo.
A introdução da questão probabilística coloca em xeque outro fundamento da ciência moderna, o privilégio das relações causais nas quais se baseava a ciência para fazer previsões determinísticas sobre o comportamento do observável.
Estabelece-se o conceito do mundo como um todo unificado e inseparável, numa complexa rede de relações onde a realidade é determinada por suas conexões com a totalidade. Essas conexões são instantâneas e imprevisíveis, colocando em cheque a concepção clássica e linear de causa e efeito.
A teoria quântica mostrou que as partículas subatômicas não são grãos isolados de matéria, mas modelos de probabilidades, interconexões numa inseparável teia cósmica que inclui o observador (o homem) e o objeto observado (o mundo, o cosmo).

Ciência, tecnologia e “tecnocentrismo”
Heidegger, no seu livro “Serenidade”, afirma que a crescente ausência de pensamento no mundo contemporâneo gera um processo que corrói o âmago mais profundo do homem atual. O homem moderno negará, veementemente, esta afirmação, dirá que em época alguma se realizaram planos tão avançados, tantas pesquisas, tantas investigações, tanto progresso na ciência como atualmente.
Com toda certeza, tal conhecimento será sempre indispensável, mas convém precisar que se trata de um tipo especial de conhecimento. Esse tipo de pensamento nunca para, nunca chega a meditar, não reflete sobre o sentido que reina em tudo o que existe.
Existem dois tipos de pensamento, sendo ambos, à sua maneira, legítimos e necessários:
- o conhecimento científico que quantifica, que calcula, objetivante, cartesiano; e
-  a reflexão que medita: “A questão filosófica do ‘pensamento’ não é uma questão entre muitas outras questões. É a única questão, por ser a única que nutre todas as demais questões. É a questão extra-ordinária, tem por instância o ser, fundo de sustentação de todo é (toda realidade), todo era e todo será” (Aprendendo a pensar II – Emmanuel Carneiro Leão). 
O pensamento filosófico não pretende apreender as coisas do mundo uma a uma, ele visa o mundo como totalidade.
A continuarmos seguindo nesse rumo que tomamos atualmente, cairá tudo nas tenazes do planejamento e do cálculo, da organização e da automatização.
A natureza transformar-se-á num posto de abastecimento gigantesco, numa fonte de energia para a técnica e indústria modernas. O poder oculto (não percebido explicitamente) da técnica contemporânea determinará a relação do homem com tudo que existe.
Como poderemos domar, controlar e assumir o controle do nosso destino, se esse poder arrasta o “homem” e, já há muito tempo, supera a sua vontade?
Trata-se de um processo que não conta mais com um centro hegemônico de onde partem as decisões. Nenhum indivíduo, nenhum grupo de homens, nenhuma comissão internacional de estadistas, cientistas, investigadores e técnicos, nenhuma política ou religião, nenhuma conferência de figuras proeminentes da economia ou da indústria se considera responsável por tal processo, razão pela qual não se encontra em nenhum âmbito específico a autoridade para detê-lo ou controlá-lo.
Estamos diante de um processo inquietante e, no entanto, o que é verdadeiramente inquietante não é o fato de o mundo se tornar cada vez mais técnico. Muito mais inquietante é o fato de o homem não estar preparado para essa transformação do mundo e na velocidade em que está acontecendo. A nossa humanidade está sendo ultrapassada pela velocidade das mudanças tecnológicas.   
O homem deve contrapor ao pensamento que calcula o pensamento que medita. O pensamento que medita exige de nós que não fiquemos, reféns do pensamento que calcula, cartesiano.
A realidade é misteriosa porque excede o que pode ser pensado pelo homem, daí o triste resultado a que nos conduziram os últimos séculos de racionalismo.
Obviamente, para todos nós, os equipamentos, aparelhos e máquinas do mundo tecnológico são hoje imprescindíveis.
Seria ter vista curta querer condenar, desprezar, a tecnologia. Mas, podemos proceder de outro modo. Podemos utilizá-la normalmente, em harmonia com a natureza, aperfeiçoá-la, e, simultaneamente, deixá-la cumprir seus objetivos sem deixá-la dominar, desviar-nos do que temos de mais próprio: o nosso modo de ser sempre num contínuo e renovado “poder-ser-no-mundo”.
Para Heidegger: “A ciência como tal não é rejeitada, de nenhuma maneira. Só a sua pretensão ao absoluto, a ser parâmetro de todas as verdades, é julgada pretensiosa” (Seminários de Zollikon, pg. 36).
Podemos dizer “sim” à utilização da técnica e, ao mesmo tempo, dizer “não” à sua tendência de hegemonia (tecnocentrismo), impedindo que nos absorva e, desse modo, vergue e esgote a nossa natureza. Com isso, devemos deixar a técnica entrar no nosso mundo quotidiano, mas, ao mesmo tempo, devemos deixá-la fora, deixá-la cumprir apenas o papel que necessariamente deve cumprir como todas as coisas que não se pretendem absolutas.
A vida não aspira à exatidão (própria da técnica), mas a unidade, a harmonia entre o homem e mundo, única garantia da sobrevivência. Nesse sentido, a busca pela precisão (científica e tecnológica) não é uma finalidade em si, mas apenas um meio, um instrumento, para alcançarmos o co-pertencimento entre nós e o nosso entorno (a natureza). A exatidão é uma condição secundária de nossa natureza, que nunca é exata, porque está sempre em evolução, modificando-se a cada momento.
O que Heidegger tem em mira é a possibilidade de a civilização mundial superar algum dia seu caráter técnico-científico-industrial como único modo do homem ser (habitar) no mundo.
Não devemos mais pensar a realidade a partir de um “centro”. Nem cosmocentrismo, nem teocentrismo, nem antropocentrismo, nem, tampouco, tecnocentrismo, mas pensar a realidade, o mundo, de um modo ex-cêntrico (sem centro hegemônico), baseado nas relações de co-pertinência.
Pensar de forma original, fora dos padrões metafísicos, um novo modo de habitarmos o mundo.

A crise de toda uma concepção de mundo

O pensamento dominante na civilização ocidental, na metafísica moderna, é objetivante, calculista, lógico, utilitarista, tecnicista (baseado na racionalidade, na subjetividade), o que nos reduz a um aglomerado de indivíduos, presos cada um ao interesse particular e ligados aos demais por um egoísmo compartilhado. É a era do individualismo egocêntrico que toma o lugar da individualidade, pré-condição da liberdade.
A visão de mundo proposta por Heidegger não pode ser compreendida dentro de uma concepção meramente racional.
Idealismo, materialismo, racionalismo, capitalismo, socialismo, para citar apenas alguns “ismos”, tem em comum a concepção de um mundo cindido entre sujeito e objeto, um mundo de funções e operações. Concepção que fundamentam todos os sistemas e organizações modernas, indiferentemente no mundo capitalista ou no mundo socialista (não se trata simplesmente, como muitos querem, de atingirmos uma miserável socialização, mas de nos dirigirmos em linha reta para uma existência com base na co-pertinência, na alteridade, valorizando e respeitando, assim, a individualidade de cada um dentro do compartilhamento da vida social).
Tudo no mundo é visto como fator de produção, matéria-prima, seja na economia de mercado, seja na economia planificada: o homem é alienado, coisificado, objetivado como mão-de-obra; a natureza é violada, irresponsavelmente alterada, ao ser tomada como matéria-prima. Sujeitar o ente (o mundo, a natureza) significa colocá-lo a serviço do sujeito.
Os modernos inventaram religiões de substituição, espiritualidades sem Deus ou, para ser mais direto, ideologias (“ismos”) que se pretendem guardiãs de ideais superiores, que pretendem se tornar verdade intocável (“As ideologias são libertadoras enquanto se fazem, são opressoras depois de feitas” -Jean Paul Sartre).
O “Eu” da modernidade ocidental (cartesiano) ou o “Nós” do coletivo socialista, nas palavras de Heidegger, “ ... não levam a lugar nenhum, pois são faces da mesma moeda da tradição metafísica ... da ‘técnica desenfreada’ ” (Heidegger).
Por superação da Metafísica, Heidegger não entende apenas a transformação da filosofia como, p.ex., em Marx (liberar a idéia da esfera do pensamento puro para salvá-la na “práxis”, é pura dualidade metafísica se expressando na cisão entre pensamento e mundo, teoria e prática), mas a superação, entendida como renúncia, de todo o sistema filosófico metafísico (de todos os sistemas que se erigem na cisão homem/mundo).
Para Marx, a libertação do homem do seu estado de alienação depende da transformação da sociedade, através de modificações nas relações sociais. Para Heidegger, o retorno do homem ao seu modo mais próprio e pleno de ser não pode ser pensado a partir simplesmente dos aspectos sociais, políticos, econômicos ou psicológicos (como sempre pensou a metafísica). A libertação do homem é uma questão existencial.
O problema do nosso tempo não é como pensam os ideólogos dos “ismos” uma questão de regime político, social ou econômico que nos levou à decadência da arte, da religião ou dos valores que regem a vida ocidental moderna, mas sim um trágico afastamento do nosso modo de ser mais próprio (nos alienamos de nós mesmos).
O que vem acontecendo é que o homem desliza para um mundo sem profundidade, fútil, superficial, sem gravidade, sem intensidade, ou seja, tudo escorrega para um mesmo plano sem diferenças, unidimensional, uni-forme.
A interpretação da realidade como funcionalidade, finalidade, eficiência, utilidade, ditados pelas necessidades do planejamento e do mercado (seja nos países capitalistas seja nos socialistas), acaba por dominar e impregnar todas as demais dimensões da cultura: a estética, a ética, a política, a econômica, a social, a familiar, a religiosa etc., que, por se tratarem de perspectivas parciais da realidade, não têm a capacidade de tocar a verdadeira questão, a fundamental, que é a questão existencial (âmbito do propriamente, genuinamente, ser).
Para a analítica existencial heideggeriana, a realidade somente adquire sentido como totalidade e não como algo passivo de ser separado em partes estanques, pois somente na unidade da sua multiplicidade é que a realidade apresenta-se na plenitude do seu vigorar.
No decorrer da história da sociedade ocidental, a metafísica foi moldando cada âmbito da atividade humana (política, economia, ética, estética, religião etc.), que atuando por si, autonomamente (buscando a razão de ser na sua própria atividade), foi desvinculando-se, perdendo a conexão, o vigor próprio da co-pertinência com o todo.
Com a fragmentação do conhecimento em partes, voltando-se cada vez mais apenas para seus próprios objetivos, desarticulou-se a nossa compreensão de totalidade, de unidade na relação mundo/homem.
Essa é a razão pela qual não podemos depositar a nossa esperança na mudança isolada do modo de ser de qualquer parte que seja.
É tempo de operar cada uma das atividades humanas, mirando no todo, convergindo para o todo (numa generosa entrega ao todo), sempre considerando que é no todo que a realidade poderá alcançar a plenitude do seu vigorar, quando, então, cada parte recuperará a sua vocação originária, pulsando em sintonia com o todo.
O mundo atravessa uma fase de grandes transformações. A cada década tudo se modifica. Nossos pontos de referência (apoiados nos valores metafísicos) se dissolvem, se desgastam, as certezas racionais deixam de existir, as ideologias de todos os matizes fracassam. A inquietação da busca nos arremessa de um lugar para outro, lançando-nos em todas as partes ao mesmo tempo (o que nos impede de ser integralmente), o que nos impossibilita de estar em parte alguma. Tudo parece fugaz, descartável, próprio para o consumo.
O ser humano vem se “empobrecendo” gradativamente, à medida que, cada vez mais tem apoiado seus valores em razões de mercado. O aumento da produção, para atender necessidades e desejos, só faz aumentar demandas por novas formas de desejo (que produz mais carência, pois o estado normal é o da insatisfação).
A tendência do mundo contemporâneo é a desvalorização de todos os valores, e quando tudo se equivale as pessoas acabam não sabendo mais diferenciar o que é significativo do que é insignificante.
O desvario (excelente palavra para sintetizar o modo de ser do mundo contemporâneo) diante das novidades se transforma numa insensibilidade (numa des-sensuação), numa perda de sentido de todas as coisas e, sobretudo, de si mesmo. Nesse contexto, o homem foge do que ele é propriamente para entregar-se vencido ao que nada tem de si mesmo.
"Temos sacrificado os velhos deuses imateriais e ocupamos o templo com o 'Deus mercado'. É ele quem organiza nossa economia, a política, os hábitos, a vida e até financia em parcelas e cartões de crédito a aparência da felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir e, quando não podemos, carregamos a frustração, a pobreza e até a autoexclusão" (José Mujica, ex-presidente do Uruguai, atual senador). 

O pensamento como gerador de atitude
A filosofia, através da reflexão, pode nos despertar para a necessidade de romper com esse círculo vicioso (mais produção, mais desejo, mais produção), redirecionando nosso modo de ser para um horizonte que aponte para a transformação do homem e do mundo.
Cada paradigma filosófico (com toda compreensão da realidade que lhe é própria) apresenta um universo específico que molda o modo como o homem interfere, age e se relaciona com o mundo. O modo metafísico de pensar colocou o homem sob o domínio dos vários fechamentos e limites próprios do modo de ser subjetivista (é um tempo narcisista, egoísta, competitivo, consumista, utilitarista e exibicionista).
“A dinâmica das tecnociências sugere que estas não se deixam submeter ao controle e ao planejamento por parte das modalidades tradicionais de poder social, econômico e político, o que evidencia, antes, um imenso potencial para colonizar e tornar
dependentes de si as diversas formas de organização da sociedade.
Desse modo, somos confrontados com a necessidade de despertar dessa alienação, conquistando pelo pensamento a capacidade de nos subtrairmos à compulsão de percorrer sempre os mesmos caminhos (repetição alienante), que, em vez de salvação, potencializam o perigo, enredando-nos mais profundamente na alienação da nossa existência. Esse “despertamento” só pode ser feito por meio de outro pensar, que ouse tomar a seu encargo a reflexão sobre o pensar tecnológico, operacional e instrumental que predomina nas ciências contemporâneas” (Oswaldo Giacoia Jr.- Heidegger urgente, introdução a um novo pensar).       
Heidegger propõe a ultrapassagem do pensamento puramente tecnológico, voltado para o desejo inatingível (representado pelo mercado), interesseiro, racional, utilitarista. É fundamental revermos todo o nosso modo de pensar e ser no mundo, pois, somente assim poderemos retomar o controle sobre o destino da humanidade.
Impõe-se uma mudança no pensamento, temos de aprender novamente a pensar.  
É fundamental superarmos a cisão entre homem e mundo colocada pelo platonismo, e levada ao paroxismo pelo cartesianismo, para que possamos ter a chance de existir plenamente, num novo e esperançoso modo de ser no mundo, reintegrado com o “outro” (homem e natureza).
Entramos no novo século sem bússola. O mundo passa por um desajuste global: desajuste ético, intelectual, financeiro, climático, geopolítico, étnico. Cabe perguntar se nossa espécie não deu início a um movimento de regressão que ameaça recolocar em questão as conquistas que tantas e sucessivas gerações construíram ... a humanidade se vê confrontada com perigos, sem equivalentes na história, que exigem soluções globais inéditas que, se não forem encontradas num futuro imediato, colocarão em risco a preservação da nossa civilização (O mundo em desajuste – Amin Maalouf). 

Texto alterado em nov de 2014


João Santacruz

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