quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O FENÔMENO DEUS

“Deus é a distância do homem a si mesmo, caminho aberto para toda questão fundamental, portanto, sem resposta inequívoca ... o humano voltado para o seu próprio abismo de inquietação e incompreensão” (“Um belo domingo” – Jorge Semprum).

Para Mircea Eliade “... toda manifestação do sagrado é importante; todo rito, mito, crença ou figura divina reflete a experiência do sagrado e, por conseguinte, implica as noções de SER, de SIGNIFICAÇÃO, e VERDADE” (História das crenças e das idéias religiosas, de Mircea Eliade).
Segundo Mircea Eliade, o homem experimenta a necessidade de existir sempre num mundo total e organizado, num Kosmos.
Mircea Eliade nos ajuda a compreender que o objeto da nossa investigação não é a pergunta por Deus propriamente, mas pela concepção do sagrado.
A noção de “sagrado” comporta um elemento irracional e inefável, a que Rudolf Otto chamou de “numinoso”, o mysteriumtremendum:
mysterium - entendido como o “completamente outro”, uma realidade incomensurável com relação ao que entendemos habitualmente por “real”, e que desconcerta a razão.
Tremendum – que faz tremer o que nos parecia evidente e estabelecidopelo nosso padrão de conhecimento.
Mas, se o numinoso, por um lado, é objeto de pavor, de um pavor místico, de uma apreensão sagrada, por outro lado, ele atrai, fascina como o único que pode proporcionar um contentamento absolutamente profundo e puro, uma promessa de felicidade.
A natureza em sua alta e plena majestade, na sua imensidão que desafia todo cálculo, todo o nosso conhecimento (pois, certamente, se estende bem além do universo do “big bang” concebido pela ciência) dá ao indivíduo, como o numinoso, o sentimento do seu nada.
Pascal escreve que: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me assusta”. Mas, junto com esse pavor quase místico, há a comoção e a admiração diante do espetáculo sublime do céu estrelado, do caráter temível, mas grandioso, dos fenômenos naturais.
O infinito, o numinoso, excede a razão. Se assim não fosse o homem não seria um “Homos religiosus”.
A natureza, diz Goethe,” permanece para nós definitivamente insondável e, contudo, exerce sobre nós uma atração eterna”.
Diante da enormidade do tempo e do espaço, num ponto da natureza infinitamente infinita, como quer Espinosa, o homem tem o sentimento do englobante e do sem limites como de um mistério insondável, diante do qual a razão se detém.
Para Espinosa, existe apenas uma substância, eterna e infinita. Nosso universo, com suas estrelas e suas galáxias, é apenas um “modo” da substância que ele chama “Deus” ou “Natureza”.

Afinal, o que é Deus?  
A partir de Espinosa, mas alterando o seu pensamento filosófico para seguir a minha intuição, proponho, sem apoio em qualquer forma de conhecimento, que todos os deuses sejam respostas à nossa contemplação desse Universo infinito ao qual pertencemos, e que quando nominamos os deuses estamos inconscientemente nos referindo ao incompreensível e misterioso cosmo.
Em termos filosóficos, investigar sobre o tema Deus (puro mistério incompreensível) nos leva a aprender muito mais sobre o ser humano do que propriamente sobre Deus.    
Como as religiões são as instituições que se consideram autorizadas a tratar de Deus, vejamos o que elas dizem.
Para as religiões monoteístas, “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança, e que ele submeta os peixes do mar, os pássaros do céu, os animais grandes, toda a terra e todos os animais pequenos que rastejam sobre a terra” (Gênesis 1.26) e “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou” (Gênesis 1.27).
A partir dessas passagens do Antigo Testamento, a imagem de Deus está desvendada, basta olhar para o ser humano.
Não seria o contrário: o homem representou Deus à sua imagem, e, em nome de Dele, arvorou-se senhor de todos os demais seres da Terra?   
Deixando de lado essa questão intrincada da semelhança, Então, o que é que os humanos querem dizer quando falam “Deus”?
Porque em todos os tempos e em todos os lugares do planeta onde a espécie humana sempre esteve reivindicou algum tipo de presença divina?
Os três principais monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo) apresentam Deus, sinteticamente, como um ser: transcendente, princípio ou causa de tudo que existe, absoluto, eterno, único, onisciente, onipresente e onipotente, pessoal (pois se relaciona com a humanidade), providencial (age em favor dos seres humanos), perfeito e bom (pois a maldade seria carência de bondade).  
Alternativamente às religiões monoteístas, o budismo (de origem asiática) apresenta uma visão do divino como não transcendente, não pessoal, não providencial, nem bom e nem mau. Tudo que existe seria parte de uma grande unidade sagrada, um fluxo universal que não cessa jamais, sem começo nem fim.
O budismo não fala em um deus único, mas da totalidade do cosmo (Nirvana), numa concepção de absoluto (que não precisa de nada, além de si próprio para existir), embora a totalidade seja vista como sagrada.
Proponho tomarmos emprestado o Deus de Espinosa, e interpretá-lo ao nosso gosto: todo deus é a Natureza, é esse Cosmo que nos contém.
Aqui, a totalidade da Natureza (o Nirvana) está muito próxima da Natureza de Espinosa. Mais uma vez, faço uma observação por minha conta, sem pretender contar com a concordância dos budistas, nem de Espinosa.
A experiência religiosa não pode simplesmente ser reduzida a uma “invenção”, um fenômeno convencional da cultura, mas trata-se de algo ligado às camadas mais profundas da “natureza humana. 
Para Leonardo Boff “Pensar Deus não é um mero exercício intelectual ... o Mistério não cabe em nenhum esquema, nem vem aprisionado nas malhas de alguma religião, Igreja ou doutrina, Ele (o Mistério) está sempre por ser conhecido ... é uma ausência presente ... Deus é Mistério (todo e qualquer mistério se torna divindade)  em si mesmo, por sua natureza é Mistério desde toda eternidade e por toda eternidade. Se assim não fosse, não seria o que o que é: Mistério, um absoluto dinamismo sem limites ... Diante do Mistério se afogam as palavras, desfalecem as imagens e morrem as referências, simplesmente o Mistério que liga e re-liga tudo (re-ligião), o universo inteiro” (Leonardo Boff, “Os olhos abertos para os Mistérios de Deus”).   
Roberto da Matta sugere que todos rezam, uns acreditando outros sem acreditar. Mais do que estabelecer um contato com as divindades, a prece é o ato religioso mínimo para entrar em contato com o sobrenatural, a imensidão avassaladora e racionalmente inatingível do cosmo, que nos cerca e aterroriza, sejamos crentes ou ateus.
Rezar é reconhecer nossa finitude, fraqueza, carência, angústia e solidão. É admitir que vivemos numa totalidade que não podemos conhecer completamente. Quando rezamos, suspendemos o “aqui e agora” dominados pelo eu para irmos ao encontro do todo cósmico (Rezar, de Roberto da Matta). 
Deus “existe” (no sentido de realidade cultural) na sua impossibilidade racional, no seu mistério, na irrespondível pergunta do homem pela sua total solidão nesse “kosmo” infinito.
Deus como uma representação inegavelmente habita (o que é mais do que existir) a nossa solidão, o nosso medo desse vazio cósmico.
Diante da pergunta se acredito em Deus devo, antes, perguntar “o que é Deus?” (método socrático), ou seja, tenho que identificar precisamente esse ser de que trata a pergunta, senão corro o risco de estar falando de algo diferente do que me foi indagado.
Afinal de contas, o que queremos dizer quando pronunciamos a palavra Deus?
Quando o judeu, o cristão, o budista, os místicos aceitam (ou os ateus  negam) um “deus”, estão se referindo à mesma coisa?
Quais as implicações existenciais, teológicas e filosóficas que a temática de Deus encerra?
Cada cultura elege o seu(s) deus(es). Mesmo os povos monoteístas (judeus, cristãos e mulçumanos) escolheram o seu Deus como se não fosse o mesmo (as diferenças existem e são essenciais).
Mas nem por isso devemos deixar de colocar essa questão que tem se mostrado fundamental para a espécie humana, em todos os tempos e lugares. Pensar deuses, o nirvana ou Deus, não é nunca um mero exercício intelectual, é conectarmo-nos com esse mistério que sempre penetrou a espécie humana em sua existência.
Não me reduzo a perguntar o que é Deus, mas dou um passo à frente no sentido de considerar com seriedade esse mistério que tanto representa e representou para todas as culturas humanas, em todos os tempos e em todos os lugares.    
Ser ateu não elimina o confronto do pensamento com esse mistério do universo, que, como todo mistério, somente pode ser pensado na sua múltipla possibilidade de se apresentar e de ser interpretado.

Santacruz

Março/2014

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