quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A BANALIDADE DO MAL

“A incapacidade de pensar não é estupidez; pode ser encontrada em pessoas altamente inteligentes ... a ausência da capacidade de pensar, bem como a estupidez, são fenômenos muito mais frequentes que a maldade. O problema é precisamente que nenhum coração malvado é necessário para causar um grande mal” (Hannah Arendt, Responsabilidade e julgamento).  

“Está abaixo da dignidade humana perder a própria individualidade e tornar-se uma mera engrenagem de de uma máquina” (Mahatma Gandhi).

Frases podem definir eras - já se disse que a frase símbolo do século 20, o século dos campos de extermínio e das bombas nucleares, poderia ser: "Estávamos apenas cumprindo ordens" (Verissimo, O Globo em 27/11/2014).

                                                             -  I -
Primeira guerra mundial: o gás mortífero
“... Fluindo dos tanques de pressão, ondas de neblina amarelada começam a rolar, mansamente, por sobre a terra de ninguém ... Assegurar a morte tem sido a incumbência desses jovens e brilhantes Doutores em Ciência.
Biologistas, patologistas, fisiologistas – ei-los após um dia árduo no laboratório, voltando para casa, ao seio da família. Um abraço da doce esposinha. Uma brincadeira com as crianças. Um jantar tranquilo com os amigos, seguido por uma noite de conversação inteligente sobre política ou filosofia ... Homens bons, bem intencionados, na sua maioria ... o diabo deitou-lhes as mãos no instante em que eles deixaram de ser seres humanos para tornarem-se especialistas” (Aldous Huxley, “O Macaco e a Essência”).

 “Em abril de 1915, as tropas germânicas horrorizaram os soldados aliados ao longo do front ocidental ao lançar mais de 150 toneladas de gás clorídrico contra duas divisões francesas em Ypres, Bélgica. O gás flutuou pela terra de ninguém (denominação ao espaço ermo que fica entre as trincheiras dos inimigos) e penetrou nas trincheiras dizimando duas divisões de soldados franceses e argelinos.  
Os Estados Unidos, que entraram na Primeira Guerra Mundial em 1917, também desenvolveram e utilizaram armamento químico... mais de cem mil toneladas de agentes químicos foram despejados na guerra” (Ópera Mundi” Hoje na História: 1915 - Alemães introduzem o gás venenoso na Primeira Guerra (Max Altman).

                                               - II -   
Segunda guerra mundial: a bomba arrasadora              
“O General Uzal G. Ent, no comando da Segunda Força Aérea dos EUA, comunicou ao Tenente Coronel Paul Tibbets que ele fora escolhido para lançar a bomba atômica ... Tibbets, controlado e reservado, parecia ser o paradigma das virtudes militares” (Gordon Thomas e Max Morgan Witts, “A bomba de Hiroxima”).
 “O General Carl Spaatz havia chegado a Washington a fim de assumir o comando das Forças Aéreas Estratégicas, recentemente criadas para a iminente invasão do Japão. Depois que o General Leslie Groves, subordinado apenas ao Secretário da Guerra, o informou da bomba atômica, Spaatz insistiu obstinadamente: - Se vou matar cem mil pessoas, não irei fazê-lo por ordens verbais. Quero a autorização por escrito ... o documento foi preparado por Groves, transmitido para a Casa Branca para aprovação ... imediatamente concedida.” (Gordon Thomas e Max Morgan Witts, “A bomba de Hiroxima”).
“O coronel Paul Tibbets cumpriu sem questionar uma ordem que custou a vida de no mínimo 100 mil pessoas* (dois terço delas faziam parte da população civil, na sua maioria mulheres, crianças e velhos, pois os homens sadios estavam na guerra), segundo estatísticas de especialistas japoneses e americanos.” (John Hersey, “Hiroxima”).
 “Às duas e cinqüenta e oito, o Enola Gay (bombardeiro que jogou a bomba) aterrou no campo Norte. Quando Tibbetz e sua tripulação deixaram o avião o General Spaatz  aproximou-se de Tibbets e pregou-lhe a Cruz do Mérito no peito do macacão” (Gordon Thomas e Max Morgan Witts, “A bomba de Hiroxima”).
* Apenas em Hiroxima, sem considerar Nagasaki.

                                                 - III -            
O julgamento em Israel do oficial alemão Adolf Eichmann
“A partir dos anos 1960, Arendt cunharia uma nova cartografia do mal na política -a banalização do mal - perpetrada por uma compacta massa burocrática de homens perfeitamente normais, mas desprovidos da capacidade de pensar, no sentido de submeterem os acontecimentos a juízo” (Introdução ao livro “Responsabilidade e julgamento” de Hannah Arendt).
 “os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava agora em julgamento (Eichmann) - era bastante comum, banal, e não demoníaco e monstruoso”. (Hannah Arendt. “A vida do espírito”).
“O homem Eichmann era o perfeito instrumento para levar a cabo a ‘solução final’: organizado, regular e eficiente tal qual a empreitada de que ele estava encarregado... era, ao mesmo tempo, um perfeito homem de família... suas notas biográficas mostram que sua principal motivação era a ascensão na carreira ... Eichmann, encarnando a ‘banalidade do mal’, associa claramente “inconsciência’, ‘afastamento da realidade’ e ‘obediência’... Quanto à obediência, o próprio Eichmann falou que isto era esperado de todo soldado alemão e considerou uma das suas principais virtudes... (Nádia Souki. “Hannah Arendt e a banalidade do mal”).
“Havia muitos iguais a ele ...  a maioria não era perversa nem sádica, era e ainda é terrível e aterradoramente normal ... este tipo de criminoso, que na realidade éhostis generis humani, comete seus crimes sob circunstâncias tais que se torna quase impossível, para ele, saber ou sentir que está agindo mal” (Arendt. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal).  

                                         - IV-
O julgamento do oficial do Khmer Vermelho que seguiu à risca as ordens de Pol Pot, que comandou a ditadura comunista no Camboja
Relato do livro “O silêncio do Algoz” do etnólogo e diretor da École Pratique dês Hautes Études e catedrático da Universidade de Sorbone, François Bizot, que em 1971, quando em missão no Camboja, foi detido pelo Khmer Vermelho e condenado à morte (suspeito de espionagem) num campo de prisioneiros no meio da selva.
Graças a uma atitude inusitada do oficial Deuch (responsável pelo campo de prisioneiros e por matar mais de 40 mil prisioneiros políticos do regime) que criou um laço com Bizot, ele foi o único ocidental libertado. 
Após a queda do regime em 1979, esse oficial foi capturado e levado a julgamento em 2009, e Bizot, como o único sobrevivente, foi convocado a testemunhar contra o oficial que o libertou.
Aqui transcrevo parte do relato que o livro faz sobre o julgamento.
“Testemunha (François Bizot) - O que quero dizer é que, para fazer ideia da abominação do algoz e de sua ação ... é preciso reabilitar a humanidade que o habita. Se fizermos dele um monstro à parte, então, me parece, o horror de sua ação de algum modo nos escapará. Se, por outro lado, o considerarmos como alguém dotado da mesma faculdade que nós, somos tomados de pavor.
Tentar compreender não é querer perdoar. Não existe, a meu ver, perdão possível ... trata-se de tentar compreender o drama universal que se desenrolou aqui, nas selvas do Camboja, como noutros países ou noutros momentos da nossa história.
Dois aspectos se contradizem de modo atroz em mim: por um lado, um homem que foi o braço armado de uma carnificina promovida pelo Estado ... por outro lado, um jovem que se entregou de corpo e alma à revolução, a uma meta de grandeza, portanto, sancionava a ideia de que o crime não somente é algo legítimo, como também meritório – tal como sucede em todas as guerras ... não posso descartar a ideia de que aquilo que Deuch perpetrou poderia ter sido perpetrado por muitos outros ...  reabilitando a sua humanidade, que tanto pertence a ele quanto a nós, podemos admitir que, decididamente, ela (a nossa humanidade) não constitui um obstáculo ao assassínio em massa que ele perpetrou”.

                                                 -V-
Conclusão
Homens normais, quando desprovidos da capacidade de pensar (no sentido de submeterem os acontecimentos a juízos ou consciência crítica), se tornam verdadeiros bárbaros da civilização, ao guiarem suas ações e pensamentos unicamente pelo aspecto técnico/administrativo.
Apoderou-se do espírito do nosso tempo um tipo de homem ao qual não interessam os princípios da civilização, mas, em primeiro lugar, o resultado, a utilidade e o sucesso do empreendimento. Não existe consciência crítica, mas apenas objetivos a serem atingidos.
Nesse quadro, qualquer ação admitida e mascarada por um ideal (por uma ideologia) passa a ser aceitável, inclusive o próprio mal.
Entretanto, essa não é uma regra geral a que estejamos condenados, existem exceções, não muitas, mas existem. Para exemplificar, recomendo o filme “4 Dias em maio”( Direção de Achim Von Borries):
Alemanha, maio de 1945, quatro dias antes do término da Segunda Guerra Mundial, um pequeno grupo de soldados russos, comandados por um capitão, ocupa um orfanato na costa do mar Báltico e tenta se entender com os habitantes, pois a guerra está praticamente terminada.
O drama inicia com a chegada de uma tropa numerosa sob o comando de um oficial de patente superior à do capitão, e que decide vandalizar as meninas do asilo. O capitão russo, apoiado por seus poucos comandados, se rebela e enfrenta a numerosa tropa comandada por seu superior (inclusive, com o uso de armas), para defender as órfãs.
O capitão, ao submeter os acontecimentos ao seu juízo crítico, age sob a consideração de que neste caso a moralidade e a imoralidade não estão vinculadas à nacionalidade, mas à sua consciência




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