quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A verdadeira arte subverte, atinge, incomoda, não ilude.

“Mas um romance tem que ser necessariamente uma coisa bela? Talvez não, ou talvez sim. Um romance se torna necessariamente uma coisa bela ainda que feito de coisas feias”.(Prefácio do livro “Beleza e tristeza” de Yasunari Kawabata).   

Em um seminário realizado na 26ª Feira do Livro de Buenos Aires, o vice-presidente da Microsoft fez uma previsão sobre a morte iminente do livro.
Zygmunt Bauman leu essa notícia no Le Monde e a relata num artigo publicado no “Tempo Brasileiro” com o título: Os livros no diálogo global das culturas.
O que me interessou nesse texto de Bauman foi quando tratou da passagem das histórias contadas oralmente para as contadas através do meio escrito: o livro.
Afirma, então, que o relato de histórias e a audição das mesmas criavam um vínculo entre o que contava e o que ouvia, e foi o restabelecimento repetitivo daquele vínculo no ritual de reiteração que sustentou a base cognitiva para a ideia de continuidade e de parentesco – o “tear caseiro” da experiência, comumente herdada e usufruída por aqueles cujas práticas de vida não haviam sido compartilhadas. Foi confortante, trouxe reafirmação, minimizou ou encobriu as exasperantes incertezas da vida (isto é, talvez, a razão por que as crianças – ainda lutando “para fazer parte de”, para encontrar o seu lugar seguro no mundo assustadoramente estranho – adoram ouvir, repetidas vezes, as mesmas histórias que sabem de cor).
Enquanto o relato de histórias permaneceu oral, para cada grupo de pessoas havia, também, um número estritamente limitado de histórias a serem contadas, bem como ouvidas, sempre na presença delas.
Na maioria das vezes, “fazer parte conjuntamente” - “nós” como uma existência distinta de “eles” – significava ouvir as mesmas histórias, raramente se podia ouvir outra diferente.
Com o advento da escrita, houve um potencial de mudança: impressas as histórias poderiam viajar sem os contadores, e cruzar as fronteiras que separavam “nós” e “eles”.
Contadores cujas histórias são impressas podem contar com um número significativo de ouvintes. O círculo de leitores e o de “parentesco” (do grupo) não precisam mais coincidir.
Com isso, os contadores de histórias poderiam enfatizar o destino um tanto desconcertante embutido numa estimulante oportunidade de superação, ou seja, de ir além daquele aspecto de suas experiências compartilhadas com os leitores (anteriormente limitada ao grupo).
Nas palavras de Hannah Arendt, que designou para os artistas a tarefa de “adicionar ao mundo” (inserir no mundo alguma coisa que não estava lá antes. O que é um ato distinto de preservar, mais uma vez, o que já foi dito e redito).
Pôs em risco a continuidade e a separação do grupo cujo mundo ele encarnava. O livro que adicionasse ao mundo – em vez de exibir, uma vez mais, seu ”auto-retrato-familiar”- perturbaria a ordem das coisas em lugar de preservar intacta a forma que ela assumira previamente.
O livro (e as demais manifestações da arte) poderia chocar-se com a sabedoria recebida do mundo ou, a qualquer custo, insuflar dúvida sobre sua exclusiva pretensão à verdade. Ao invés de ser, como antes, um instrumento de continuidade e separação, o livro (e a arte) se transformou num fermento de Auto-reflexão e mudança.
As artes haviam se tornado subversivas.
A arte (nota Kundera em A arte do romance) “como Penélope, ela desfaz toda noite o tapete que os teólogos, filósofos e homens cultos teceram no dia anterior”. Visto que ela não poderia senão fazer a mediação entre as diversas experiências humanas, minando assim as certezas de cada uma delas, a ficção artística serviu como uma contracultura irônica e irreverente à cultura tecnocientífica e burocrática da modernidade, que promoveu a obsessão pela ordem, por classificações concisas e hierarquias severas, pela conformidade à regra e pela disciplina rígida.

PS: Não sei quem foi o comentador do texto do Zygmunt Bauman. Seja quem for dou-lhe o crédito pelo texto.
A BANALIDADE DO MAL

“A incapacidade de pensar não é estupidez; pode ser encontrada em pessoas altamente inteligentes ... a ausência da capacidade de pensar, bem como a estupidez, são fenômenos muito mais frequentes que a maldade. O problema é precisamente que nenhum coração malvado é necessário para causar um grande mal” (Hannah Arendt, Responsabilidade e julgamento).  

“Está abaixo da dignidade humana perder a própria individualidade e tornar-se uma mera engrenagem de de uma máquina” (Mahatma Gandhi).

Frases podem definir eras - já se disse que a frase símbolo do século 20, o século dos campos de extermínio e das bombas nucleares, poderia ser: "Estávamos apenas cumprindo ordens" (Verissimo, O Globo em 27/11/2014).

                                                             -  I -
Primeira guerra mundial: o gás mortífero
“... Fluindo dos tanques de pressão, ondas de neblina amarelada começam a rolar, mansamente, por sobre a terra de ninguém ... Assegurar a morte tem sido a incumbência desses jovens e brilhantes Doutores em Ciência.
Biologistas, patologistas, fisiologistas – ei-los após um dia árduo no laboratório, voltando para casa, ao seio da família. Um abraço da doce esposinha. Uma brincadeira com as crianças. Um jantar tranquilo com os amigos, seguido por uma noite de conversação inteligente sobre política ou filosofia ... Homens bons, bem intencionados, na sua maioria ... o diabo deitou-lhes as mãos no instante em que eles deixaram de ser seres humanos para tornarem-se especialistas” (Aldous Huxley, “O Macaco e a Essência”).

 “Em abril de 1915, as tropas germânicas horrorizaram os soldados aliados ao longo do front ocidental ao lançar mais de 150 toneladas de gás clorídrico contra duas divisões francesas em Ypres, Bélgica. O gás flutuou pela terra de ninguém (denominação ao espaço ermo que fica entre as trincheiras dos inimigos) e penetrou nas trincheiras dizimando duas divisões de soldados franceses e argelinos.  
Os Estados Unidos, que entraram na Primeira Guerra Mundial em 1917, também desenvolveram e utilizaram armamento químico... mais de cem mil toneladas de agentes químicos foram despejados na guerra” (Ópera Mundi” Hoje na História: 1915 - Alemães introduzem o gás venenoso na Primeira Guerra (Max Altman).

                                               - II -   
Segunda guerra mundial: a bomba arrasadora              
“O General Uzal G. Ent, no comando da Segunda Força Aérea dos EUA, comunicou ao Tenente Coronel Paul Tibbets que ele fora escolhido para lançar a bomba atômica ... Tibbets, controlado e reservado, parecia ser o paradigma das virtudes militares” (Gordon Thomas e Max Morgan Witts, “A bomba de Hiroxima”).
 “O General Carl Spaatz havia chegado a Washington a fim de assumir o comando das Forças Aéreas Estratégicas, recentemente criadas para a iminente invasão do Japão. Depois que o General Leslie Groves, subordinado apenas ao Secretário da Guerra, o informou da bomba atômica, Spaatz insistiu obstinadamente: - Se vou matar cem mil pessoas, não irei fazê-lo por ordens verbais. Quero a autorização por escrito ... o documento foi preparado por Groves, transmitido para a Casa Branca para aprovação ... imediatamente concedida.” (Gordon Thomas e Max Morgan Witts, “A bomba de Hiroxima”).
“O coronel Paul Tibbets cumpriu sem questionar uma ordem que custou a vida de no mínimo 100 mil pessoas* (dois terço delas faziam parte da população civil, na sua maioria mulheres, crianças e velhos, pois os homens sadios estavam na guerra), segundo estatísticas de especialistas japoneses e americanos.” (John Hersey, “Hiroxima”).
 “Às duas e cinqüenta e oito, o Enola Gay (bombardeiro que jogou a bomba) aterrou no campo Norte. Quando Tibbetz e sua tripulação deixaram o avião o General Spaatz  aproximou-se de Tibbets e pregou-lhe a Cruz do Mérito no peito do macacão” (Gordon Thomas e Max Morgan Witts, “A bomba de Hiroxima”).
* Apenas em Hiroxima, sem considerar Nagasaki.

                                                 - III -            
O julgamento em Israel do oficial alemão Adolf Eichmann
“A partir dos anos 1960, Arendt cunharia uma nova cartografia do mal na política -a banalização do mal - perpetrada por uma compacta massa burocrática de homens perfeitamente normais, mas desprovidos da capacidade de pensar, no sentido de submeterem os acontecimentos a juízo” (Introdução ao livro “Responsabilidade e julgamento” de Hannah Arendt).
 “os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava agora em julgamento (Eichmann) - era bastante comum, banal, e não demoníaco e monstruoso”. (Hannah Arendt. “A vida do espírito”).
“O homem Eichmann era o perfeito instrumento para levar a cabo a ‘solução final’: organizado, regular e eficiente tal qual a empreitada de que ele estava encarregado... era, ao mesmo tempo, um perfeito homem de família... suas notas biográficas mostram que sua principal motivação era a ascensão na carreira ... Eichmann, encarnando a ‘banalidade do mal’, associa claramente “inconsciência’, ‘afastamento da realidade’ e ‘obediência’... Quanto à obediência, o próprio Eichmann falou que isto era esperado de todo soldado alemão e considerou uma das suas principais virtudes... (Nádia Souki. “Hannah Arendt e a banalidade do mal”).
“Havia muitos iguais a ele ...  a maioria não era perversa nem sádica, era e ainda é terrível e aterradoramente normal ... este tipo de criminoso, que na realidade éhostis generis humani, comete seus crimes sob circunstâncias tais que se torna quase impossível, para ele, saber ou sentir que está agindo mal” (Arendt. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal).  

                                         - IV-
O julgamento do oficial do Khmer Vermelho que seguiu à risca as ordens de Pol Pot, que comandou a ditadura comunista no Camboja
Relato do livro “O silêncio do Algoz” do etnólogo e diretor da École Pratique dês Hautes Études e catedrático da Universidade de Sorbone, François Bizot, que em 1971, quando em missão no Camboja, foi detido pelo Khmer Vermelho e condenado à morte (suspeito de espionagem) num campo de prisioneiros no meio da selva.
Graças a uma atitude inusitada do oficial Deuch (responsável pelo campo de prisioneiros e por matar mais de 40 mil prisioneiros políticos do regime) que criou um laço com Bizot, ele foi o único ocidental libertado. 
Após a queda do regime em 1979, esse oficial foi capturado e levado a julgamento em 2009, e Bizot, como o único sobrevivente, foi convocado a testemunhar contra o oficial que o libertou.
Aqui transcrevo parte do relato que o livro faz sobre o julgamento.
“Testemunha (François Bizot) - O que quero dizer é que, para fazer ideia da abominação do algoz e de sua ação ... é preciso reabilitar a humanidade que o habita. Se fizermos dele um monstro à parte, então, me parece, o horror de sua ação de algum modo nos escapará. Se, por outro lado, o considerarmos como alguém dotado da mesma faculdade que nós, somos tomados de pavor.
Tentar compreender não é querer perdoar. Não existe, a meu ver, perdão possível ... trata-se de tentar compreender o drama universal que se desenrolou aqui, nas selvas do Camboja, como noutros países ou noutros momentos da nossa história.
Dois aspectos se contradizem de modo atroz em mim: por um lado, um homem que foi o braço armado de uma carnificina promovida pelo Estado ... por outro lado, um jovem que se entregou de corpo e alma à revolução, a uma meta de grandeza, portanto, sancionava a ideia de que o crime não somente é algo legítimo, como também meritório – tal como sucede em todas as guerras ... não posso descartar a ideia de que aquilo que Deuch perpetrou poderia ter sido perpetrado por muitos outros ...  reabilitando a sua humanidade, que tanto pertence a ele quanto a nós, podemos admitir que, decididamente, ela (a nossa humanidade) não constitui um obstáculo ao assassínio em massa que ele perpetrou”.

                                                 -V-
Conclusão
Homens normais, quando desprovidos da capacidade de pensar (no sentido de submeterem os acontecimentos a juízos ou consciência crítica), se tornam verdadeiros bárbaros da civilização, ao guiarem suas ações e pensamentos unicamente pelo aspecto técnico/administrativo.
Apoderou-se do espírito do nosso tempo um tipo de homem ao qual não interessam os princípios da civilização, mas, em primeiro lugar, o resultado, a utilidade e o sucesso do empreendimento. Não existe consciência crítica, mas apenas objetivos a serem atingidos.
Nesse quadro, qualquer ação admitida e mascarada por um ideal (por uma ideologia) passa a ser aceitável, inclusive o próprio mal.
Entretanto, essa não é uma regra geral a que estejamos condenados, existem exceções, não muitas, mas existem. Para exemplificar, recomendo o filme “4 Dias em maio”( Direção de Achim Von Borries):
Alemanha, maio de 1945, quatro dias antes do término da Segunda Guerra Mundial, um pequeno grupo de soldados russos, comandados por um capitão, ocupa um orfanato na costa do mar Báltico e tenta se entender com os habitantes, pois a guerra está praticamente terminada.
O drama inicia com a chegada de uma tropa numerosa sob o comando de um oficial de patente superior à do capitão, e que decide vandalizar as meninas do asilo. O capitão russo, apoiado por seus poucos comandados, se rebela e enfrenta a numerosa tropa comandada por seu superior (inclusive, com o uso de armas), para defender as órfãs.
O capitão, ao submeter os acontecimentos ao seu juízo crítico, age sob a consideração de que neste caso a moralidade e a imoralidade não estão vinculadas à nacionalidade, mas à sua consciência




O homem Jesus

“Jesus como Deus, duvidoso, como homem um grande filósofo” (frase que ouvi quando jovem, mas não me recordo em que contexto).
Hoje, lendo um livro de Ernest Renan (filósofo e literato que se empenhou em aplicar uma filologia crítica aos textos sagrados do ocidente monoteísta), me lembrei dessa afirmação sobre o homem Jesus.
Indiscutivelmente, Jesus é a figura central da história do ocidente. Nosso tempo é contado a partir da data do seu nascimento.
Mas quem foi, realmente, esse homem.
Um andarilho perturbado, contador de parábolas, anunciando novos tempos? Um simples curador e exorcista de demônios?
Um dos tantos subversivos da palestina? Profeta ou crente fanático que pregava uma nova fé?
Foi por seus preceitos morais, pelas suas máximas que se tornaram moeda corrente nas sinagogas, pelo Sermão da Montanha, que Jesus foi crucificado? Certamente não, responde Renan.    
Jesus foi morto porque dizia algo a mais.
Cada qual queria fazer de Jesus um sábio, um filósofo, um patriota, um moralista, um santo, o filho de Deus.
Ele não foi nada disso. Foi um ENCANTADOR (Aqui temos o poeta Renan).
Era um homem fora da regra, foi torturado e morto para se submeter a ela (como Kaspar Hauser no maravilhoso e rico em simbolismos filme do cineasta alemão Werner Herzog).
“Kaspar Hauser, um personagem humano que não correspondia, na época em que viveu (séc. XIX), aos padrões de comportamento tidos ou esperados como "normais" dentro da cultura da época.
Após algum tempo de convivência com a comunidade de Nuremberg, Kaspar Hauser passa a representar um incômodo, pois vê com outros olhos a realidade, que aos olhos dos outros estava tão bem ordenada: os olhos "subversivos" que não aceitam os referenciais que a sociedade insiste em lhe impor, negando, de certa forma, a ordem social vigente” (Psicologia USP, O enigma de Kaspar Hauser: uma abordagem psicossocial - Maria Clara Lopes Saboya)
Sim, Jesus foi um encantador (palavra poética e precisa).
Sim, um filósofo sem escola que nos legou uma nova, novíssima, mensagem de amor, doação, fé e liberdade.
Percebo como a mensagem de Jesus é atual quando leio os pensadores contemporâneos “pregarem” o modo de ser da alteridade, como uma forma de superarmos nosso destrutivo egocentrismo cartesiano (próprio do nosso tempo, individualista, competitivo, utilitarista): “O homem não é um “ser para si”, não é primordialmente um “Eu” (uma consciência, uma racionalidade), o ser humano existe em co-pertencimento com o mundo e com o outro (é alteridade); o homem somente “é” no vínculo, na relação de unidade, que vai tecendo com o mundo e com o “outro”. É a partir dessas relações que o homem e o mundo adquirem sentido.
A alteridade se sobrepõe à subjetividade e à noção do ser como absoluto, quando o relativiza ao tecê-lo no conjunto das relações de um universo de seres.
O mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros (homens e natureza). O ser humano é um “ser-com” os outros” (pensamento heideggeriano que tem orientado, e muitas vezes desorientado, os mais importantes pensadores contemporâneos).
  
E Jesus não disse exatamente isso?

Nem o mais radical dos ateus deveria desprezá-lo, pois não, importa se era filho de Deus (ou não), se existem evidências históricas da sua existência, o que importa é o fenômeno Jesus, que contagiou – ENCANTOU - a humanidade.
Somente espero que algum dia estejamos tão “encantados” por sua mensagem que superemos a infância do nosso processo evolutivo (infância porque, ainda, destrutiva) e possamos nos apossar totalmente da nossa  humanidade.
  
Santacruz (reprodução de idéias contidas no livro “Vida de Jesus” de Ernest Renan, com intervenções minhas que esclarecem o meu pensamento sobre esse fenômeno da nossa cultura).

Julho de 2013



O FENÔMENO DEUS

“Deus é a distância do homem a si mesmo, caminho aberto para toda questão fundamental, portanto, sem resposta inequívoca ... o humano voltado para o seu próprio abismo de inquietação e incompreensão” (“Um belo domingo” – Jorge Semprum).

Para Mircea Eliade “... toda manifestação do sagrado é importante; todo rito, mito, crença ou figura divina reflete a experiência do sagrado e, por conseguinte, implica as noções de SER, de SIGNIFICAÇÃO, e VERDADE” (História das crenças e das idéias religiosas, de Mircea Eliade).
Segundo Mircea Eliade, o homem experimenta a necessidade de existir sempre num mundo total e organizado, num Kosmos.
Mircea Eliade nos ajuda a compreender que o objeto da nossa investigação não é a pergunta por Deus propriamente, mas pela concepção do sagrado.
A noção de “sagrado” comporta um elemento irracional e inefável, a que Rudolf Otto chamou de “numinoso”, o mysteriumtremendum:
mysterium - entendido como o “completamente outro”, uma realidade incomensurável com relação ao que entendemos habitualmente por “real”, e que desconcerta a razão.
Tremendum – que faz tremer o que nos parecia evidente e estabelecidopelo nosso padrão de conhecimento.
Mas, se o numinoso, por um lado, é objeto de pavor, de um pavor místico, de uma apreensão sagrada, por outro lado, ele atrai, fascina como o único que pode proporcionar um contentamento absolutamente profundo e puro, uma promessa de felicidade.
A natureza em sua alta e plena majestade, na sua imensidão que desafia todo cálculo, todo o nosso conhecimento (pois, certamente, se estende bem além do universo do “big bang” concebido pela ciência) dá ao indivíduo, como o numinoso, o sentimento do seu nada.
Pascal escreve que: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me assusta”. Mas, junto com esse pavor quase místico, há a comoção e a admiração diante do espetáculo sublime do céu estrelado, do caráter temível, mas grandioso, dos fenômenos naturais.
O infinito, o numinoso, excede a razão. Se assim não fosse o homem não seria um “Homos religiosus”.
A natureza, diz Goethe,” permanece para nós definitivamente insondável e, contudo, exerce sobre nós uma atração eterna”.
Diante da enormidade do tempo e do espaço, num ponto da natureza infinitamente infinita, como quer Espinosa, o homem tem o sentimento do englobante e do sem limites como de um mistério insondável, diante do qual a razão se detém.
Para Espinosa, existe apenas uma substância, eterna e infinita. Nosso universo, com suas estrelas e suas galáxias, é apenas um “modo” da substância que ele chama “Deus” ou “Natureza”.

Afinal, o que é Deus?  
A partir de Espinosa, mas alterando o seu pensamento filosófico para seguir a minha intuição, proponho, sem apoio em qualquer forma de conhecimento, que todos os deuses sejam respostas à nossa contemplação desse Universo infinito ao qual pertencemos, e que quando nominamos os deuses estamos inconscientemente nos referindo ao incompreensível e misterioso cosmo.
Em termos filosóficos, investigar sobre o tema Deus (puro mistério incompreensível) nos leva a aprender muito mais sobre o ser humano do que propriamente sobre Deus.    
Como as religiões são as instituições que se consideram autorizadas a tratar de Deus, vejamos o que elas dizem.
Para as religiões monoteístas, “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança, e que ele submeta os peixes do mar, os pássaros do céu, os animais grandes, toda a terra e todos os animais pequenos que rastejam sobre a terra” (Gênesis 1.26) e “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou” (Gênesis 1.27).
A partir dessas passagens do Antigo Testamento, a imagem de Deus está desvendada, basta olhar para o ser humano.
Não seria o contrário: o homem representou Deus à sua imagem, e, em nome de Dele, arvorou-se senhor de todos os demais seres da Terra?   
Deixando de lado essa questão intrincada da semelhança, Então, o que é que os humanos querem dizer quando falam “Deus”?
Porque em todos os tempos e em todos os lugares do planeta onde a espécie humana sempre esteve reivindicou algum tipo de presença divina?
Os três principais monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo) apresentam Deus, sinteticamente, como um ser: transcendente, princípio ou causa de tudo que existe, absoluto, eterno, único, onisciente, onipresente e onipotente, pessoal (pois se relaciona com a humanidade), providencial (age em favor dos seres humanos), perfeito e bom (pois a maldade seria carência de bondade).  
Alternativamente às religiões monoteístas, o budismo (de origem asiática) apresenta uma visão do divino como não transcendente, não pessoal, não providencial, nem bom e nem mau. Tudo que existe seria parte de uma grande unidade sagrada, um fluxo universal que não cessa jamais, sem começo nem fim.
O budismo não fala em um deus único, mas da totalidade do cosmo (Nirvana), numa concepção de absoluto (que não precisa de nada, além de si próprio para existir), embora a totalidade seja vista como sagrada.
Proponho tomarmos emprestado o Deus de Espinosa, e interpretá-lo ao nosso gosto: todo deus é a Natureza, é esse Cosmo que nos contém.
Aqui, a totalidade da Natureza (o Nirvana) está muito próxima da Natureza de Espinosa. Mais uma vez, faço uma observação por minha conta, sem pretender contar com a concordância dos budistas, nem de Espinosa.
A experiência religiosa não pode simplesmente ser reduzida a uma “invenção”, um fenômeno convencional da cultura, mas trata-se de algo ligado às camadas mais profundas da “natureza humana. 
Para Leonardo Boff “Pensar Deus não é um mero exercício intelectual ... o Mistério não cabe em nenhum esquema, nem vem aprisionado nas malhas de alguma religião, Igreja ou doutrina, Ele (o Mistério) está sempre por ser conhecido ... é uma ausência presente ... Deus é Mistério (todo e qualquer mistério se torna divindade)  em si mesmo, por sua natureza é Mistério desde toda eternidade e por toda eternidade. Se assim não fosse, não seria o que o que é: Mistério, um absoluto dinamismo sem limites ... Diante do Mistério se afogam as palavras, desfalecem as imagens e morrem as referências, simplesmente o Mistério que liga e re-liga tudo (re-ligião), o universo inteiro” (Leonardo Boff, “Os olhos abertos para os Mistérios de Deus”).   
Roberto da Matta sugere que todos rezam, uns acreditando outros sem acreditar. Mais do que estabelecer um contato com as divindades, a prece é o ato religioso mínimo para entrar em contato com o sobrenatural, a imensidão avassaladora e racionalmente inatingível do cosmo, que nos cerca e aterroriza, sejamos crentes ou ateus.
Rezar é reconhecer nossa finitude, fraqueza, carência, angústia e solidão. É admitir que vivemos numa totalidade que não podemos conhecer completamente. Quando rezamos, suspendemos o “aqui e agora” dominados pelo eu para irmos ao encontro do todo cósmico (Rezar, de Roberto da Matta). 
Deus “existe” (no sentido de realidade cultural) na sua impossibilidade racional, no seu mistério, na irrespondível pergunta do homem pela sua total solidão nesse “kosmo” infinito.
Deus como uma representação inegavelmente habita (o que é mais do que existir) a nossa solidão, o nosso medo desse vazio cósmico.
Diante da pergunta se acredito em Deus devo, antes, perguntar “o que é Deus?” (método socrático), ou seja, tenho que identificar precisamente esse ser de que trata a pergunta, senão corro o risco de estar falando de algo diferente do que me foi indagado.
Afinal de contas, o que queremos dizer quando pronunciamos a palavra Deus?
Quando o judeu, o cristão, o budista, os místicos aceitam (ou os ateus  negam) um “deus”, estão se referindo à mesma coisa?
Quais as implicações existenciais, teológicas e filosóficas que a temática de Deus encerra?
Cada cultura elege o seu(s) deus(es). Mesmo os povos monoteístas (judeus, cristãos e mulçumanos) escolheram o seu Deus como se não fosse o mesmo (as diferenças existem e são essenciais).
Mas nem por isso devemos deixar de colocar essa questão que tem se mostrado fundamental para a espécie humana, em todos os tempos e lugares. Pensar deuses, o nirvana ou Deus, não é nunca um mero exercício intelectual, é conectarmo-nos com esse mistério que sempre penetrou a espécie humana em sua existência.
Não me reduzo a perguntar o que é Deus, mas dou um passo à frente no sentido de considerar com seriedade esse mistério que tanto representa e representou para todas as culturas humanas, em todos os tempos e em todos os lugares.    
Ser ateu não elimina o confronto do pensamento com esse mistério do universo, que, como todo mistério, somente pode ser pensado na sua múltipla possibilidade de se apresentar e de ser interpretado.

Santacruz

Março/2014