quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Antropocentrismo ou alteridade?

O nosso mundo constitui apenas uma parte ínfima do universo. A nossa galáxia, a Via Láctea, é uma diminuta ilha composta de bilhões de estrelas, da qual o Sol e seus planetas fazem parte.
A necessidade de uma explicação para o cosmo, e para esse acontecimento que é a vida (e a morte), acompanha o homem em toda a sua história.
Não dispormos de nenhuma resposta segura para o porquê da vida e da morte é a razão da angústia que nos impele na busca de um significado para a nossa existência, sendo a origem de todos os mitos, todas as religiões, da filosofia e da própria ciência.
A forma que o homem encontrou para apaziguar essa angústia foi acreditar que possui nos planos da natureza um lugar necessário, que a sua presença no universo é necessária, fruto dos desígnios divino e não do acaso.

Antropocentrismo
O narcisismo universal do homem sofreu três golpes: o cosmológico, o biológico e o psicológico. Verdadeiras revoluções demolidoras do nosso antropocentrismo, que revelaram ao homem a sua verdadeira dimensão em relação ao cosmo, aos outros seres vivos e a si mesmo.
Copérnico, ao desmentir o geocentrismo e afirmar o heliocentrismo, retirou o homem do centro do Universo. Simplesmente habitamos um planeta que não é o centro do universo, nada especial, perdido entre bilhões de tantos outros planetas e galáxias.
Darwin, com a teoria da evolução das espécies, mostrou que a nossa espécie evoluiu das primeiras macromoléculas até as formas de vida que hoje conhecemos, ou seja, somos apenas o estágio mais avançado da evolução da vida.
Freud ao revelar a existência do inconsciente desmistificou as pretensões de soberania da razão entre os herdeiros do Iluminismo.
“O ego não é senhor da sua própria casa”, o nosso consciente não é a principal fonte que comanda nossas ações, desejos e medos. As nossas escolhas, tidas como racionais, não se encontram totalmente sob nosso controle, pois estão sujeitas aos ecos do nosso inconsciente.
Não passamos de uma pequena jangada navegando à deriva no imenso e revolto mar do inconsciente.

Finitude
Os referidos impactos, tudo indica, não foram suficientes para dissuadir o homem da sua pretensão, enquanto espécie, a uma ascendência divina que lhe conferiu a distinção da eternidade.
É provável que um quarto impacto sobre o narcisismo do homem venha a ser definitivo: o reconhecimento da sua transitoriedade.
O excesso, por mais estranho que possa parecer numa análise apressada, já traz em si a perda, a falta. 
Se a vida fosse eterna, talvez, não fosse tão valorizada. Do mesmo modo, a esperança de outra vida após a morte subvaloriza a vida terrena. Somente a iminência da perda valoriza o que se tem, posto que provisório.
A vida é um aqui e agora sem nenhum futuro garantido, cada dia é uma conquista frente ao tempo.
Ao acreditar que a morte é a elevação para uma forma de vida superior, que lhe garantirá o desfrute da eternidade, o homem está negando a morte, desprezando a vida, e enfraquecendo o esforço de preservação da espécie .
O reconhecimento da nossa finitude talvez seja a única forma de garantir a sobrevivência da nossa espécie. Trata-se de um paradoxo: para sobreviver como espécie o homem precisa, antes, aceitar a sua própria morte (frente à inexorabilidade da morte o homem tende a valorizar a vida, e, consequentemente, valorizar a sua relação com o mundo e com o outro).
Devemos definitivamente reconhecer que seguiremos ordinariamente o mesmo ciclo universal de todos os demais elementos do cosmo: um início, uma existência e a inexorável dissolução.

O homem, predador do planeta e de si mesmo
O homem, que é o ser mais influente no nosso planeta, vem travando uma luta entre as ações que favorecem a preservação do planeta e aquelas que contribuem para a sua destruição.
As atitudes e ações tomadas hoje pelo homem, dada a sua amplitude e abrangência nesse diminuto mundo global, podem comprometer como nunca antes a sobrevivência do planeta.
A presença do homem no planeta se tornou um fator de perturbação do ambiente, pela prática de ações que vem abalando o solo que lhe dá guarida, desestabilizando o corpo que lhe dá vida, solapando as bases de que depende sua própria existência.
Nas palavras de Günter Anders: “Há uma distância entre nossa capacidade de fabricar e realizar e a nossa incapacidade de imaginar as consequências do que fabricamos. Nossa percepção não está mais à altura do que podemos produzir”.
Segundo Anders, não se trata de considerar que os homens de agora sejam piores do que os de gerações precedentes, mas, apenas, as possibilidades técnicas disponíveis na nossa época podem provocar danos antes impensáveis e cada vez mais perto do irreparável. O homem não se tornou pior, mas as suas ações se tornaram mais carregadas de consequências.
Vivemos, hoje, diante da possibilidade de destruição total do planeta, em decorrência do desvirtuamento no uso da técnica e da ciência que propiciou um potencial de destruição jamais alcançado pelo homem.
O mais incrível é que sabemos que forças aparentemente incontroláveis se movem sem que haja um centro de comando que possa decidir a continuidade ou não das mesmas.
Somos todos responsáveis e, ao mesmo tempo, ninguém se considera responsável por esse estado de coisas, por esse processo que parece estar fora do controle do homem. Se o processo se desprendeu da vontade do homem, quem poderá prever o resultado, o seu desfecho?
É uma questão de sobrevivência do planeta e da raça humana reverter esse processo: os recursos naturais tratados como simples matéria-prima, sem o menor cuidado com a preservação da natureza; a exploração do homem pelo homem, considerado como mera mão de obra para a produção; o consumismo que se apoderou do nosso modo de ser, hoje assentado sobre a tecnologia, a economia e o mercado, reduzindo tudo em mercadoria e oportunidade de lucro.

Alteridade
Eu não sou simplesmente eu, sou o mundo, sou o outro; mas não sou o outro, nem o mundo; sou eu e o mundo e o outro em contínua relação; o meu próprio existir somente acontece no existir do mundo e do outro.
Alteridade é um conduzir-se para além de si, ser em si através da relação com o mundo e com o outro.
O homem não é um “ser para si”, não é primordialmente um “Eu”, o ser humano existe em co-pertencimento com o mundo e com o outro; o homem somente “é” no vínculo, na relação, que vai tecendo com o mundo e com o “outro”. É a partir dessas relações que o homem e o mundo adquirem sentido.
É no reconhecimento da necessidade de uma mudança no seu modo de ser (hoje totalmente moldado pelo subjetivismo) que o homem poderá preparar o advento de uma nova ordem verdadeiramente humana que o harmonize com a sociedade (os outros homens) e com a natureza (o mundo).
Pertence ao homem o destino do mundo: a sua destruição ou reparação.
A natureza das nossas ações, no presente e no futuro imediato, é que determinará a tendência que predominará. Poderemos garantir uma existência mais longa para o nosso planeta e, portanto, para a nossa espécie, ou poderemos irremediavelmente comprometer a nossa existência.

João Carlos Santacruz / março de 2008

Bibliografia

(1)  “A origem da vida e o destino da matéria” (Luiz Carlos Bruschi, doutor em histologia pela USP).
(2)  Marcelo Gleiser, professor de física teórica - Folha de SP, 13/07/2008, Mais ciência.
(3)  “O acaso e a necessidade” – Jacques Monod (Prêmio Nobel de Fisiologia e medicina em 1965).
(4)   “Guerra e Morte” – A negação da morte de Gley Pacheco Costa (Pós-graduado em Psiquiatria pela UFRGS, Membro da Associação Psicanalítica Internacional).  
(5)  “Ecce homo”, prólogo § 2 - Nietzsche.
(6)  “A distância entre o que somos capazes de produzir e o que somos capazes de imaginar” –  Günter Anders (filósofo, aluno de Husserl e, posteriormente, de Heidegger e assistente de Max Scheler).
(7)  Filosofia, introdução ao pensar – Leda Miranda Hühne (Professora e editora da Revista de Filosofia SEAF).





Crônica de uma solidão disfarçada

Da varanda de um bar - Sinuca Bar - vejo o mar (gosto de perceber a rima entre mar e bar, ambos muito bons quando no raso, mas perigosos na profundidade).
Uma chuva mansa me convida à melancolia. O mar contribui com suas ondas que se quebram pausadamente, sonolentamente, na arei da praia.
O bar é barulhento, só oferece uma única marca de cerveja bem gelada e  uma péssima música para alegrar idiotas.
Em uma juntada de várias mesas, muitos homens, não jovens, maduros mas não idosos, falam muito alto animadamente. Rola muita energia.
Beijam-se na chegada de cada um. Abraçam-se a cada momento da conversa, tocam-se, riem, gargalham, seus olhos brilham e falam muitos palavrões carinhosamente.
A alegria é genuína e contagiante, às vezes penso que vão dançar em volta da mesa, como um grupo primitivo em volta da fogueira. Estão a meio caminho de uma bebedeira (trata-se, realmente, de uma alegria primitiva, puro sentimento).
Na única mesa com uma cadeira só (ou de um bêbado só) sento eu, contido e feliz, distante daquela mesa para que não me percebam e não me convidem a participar.
Prefiro ficar só, não sei lidar com grupos grandes, embora seja sempre mais perigoso lidar consigo mesmo.
Em dado momento, me pergunto: o que faço aqui? Na verdade não sei, vim parar aqui, sem destino ou escolha.
Apenas sei que estou fora do meu lugar, mas gosto de estar aqui, não entre eles, apenas próximo a eles.
Aqui fico lendo, escrevendo esse texto, bebendo, e, principalmente, observando-os de um lugar onde não me notam.
Escondido nos vincos da solidão, semi-bêbado, talvez muito bêbado, espiono a felicidade e escrevo sobre ela.

Santacruz

20/ dez/2013
Técnica versus intuição

Kitaro Nishida, filósofo japonês (1868), utilizou-se de um conceito-chave para caracterizar a cultura japonesa: “intuição-ato”, a intuição que se forma no momento do próprio ato.
Para elucidar a idéia de Nishida, Hisayasu Nakagawa, professor emérito da Universidade de Kioto, em seu livro “Introdução à cultura japonesa”, cita o depoimento do filósofo alemão Eugen Herrigel (1884-1955) sobre a aprendizagem do tiro de arco. 
Herrigel foi professor da Universidade de Erlangen (Alemanha) e, além de livros de filosofia, escreveu dois livros sobre o tiro de arco e um sobre o Zen budismo.
Em seu livro “A arte de tiro de arco japonês” narra um episódio que vivenciou com seu mestre japonês. Seu mestre pediu-lhe que atirasse sem se preocupar com o alvo, que não mirasse, não pensasse no alvo nem no modo de atingi-lo, enfim, que não pensasse em nada.   
Explicou-lhe que: “se o alvo e o atirador se tornassem um, a flecha que parte do centro entra no centro. Pois não se está mirando o centro, mas a si mesmo”.
Herrigel resistiu à idéia de não mirar o alvo. O mestre lhe falou: “se você quer ser um especialista do tiro de arco não posso ajudá-lo, sou apenas mestre espiritual”.
Herrigel confessou que não se conformava em ser um atirador “espiritual”.
Então, o mestre lhe ensinou que qualquer samurai quando se coloca em posição de luta seu espírito se concentra para alcançar um estado de plena meditação, de aniquilamento de si, e que o samurai só volta a si após o combate, quando retorna ao mundo habitual.

Reflexão sobre a incapacidade de Herrigel de atender ao seu mestre e a história do samurai Musashi.
Herrigel e seu mestre japonês estão separados por uma distância intransponível: culturas totalmente diferentes. 
A experiência vivida pelo atirador não pode ser explicada, nem apreendida por nenhum raciocínio lógico. Não se trata de um conhecimento especializado.
A “intuição-ato” é de um âmbito radicalmente diverso (radical no sentido de fundamentado na raiz) do âmbito da técnica. O fazer técnico, um modo de ser tipicamente ocidental (cartesiano), pressupõe uma dualidade (uma separação) entre o homem que age para uma finalidade e o objeto da sua ação.
A “intuição-ato” é a intuição atualizada, ou seja, transformada em ato em determinado momento (extra)ordinário. Portanto, raramente alcançado e somente por homens “especiais”, radicalmente abertos, prontos para se entregarem à força de uma possibilidade, o que exclui o homem regido pelo modo de ser cartesiano, radicalmente lógico, fechado na sua racionalidade, movido pela certeza, objetivo, utilitarista.
É a intuição que se conforma ao ato. É o homem se transformando no seu próprio fazer, tal qual Pelé correndo no campo com a bola a seus pés, completamente livre para observar todo o campo a sua volta, seus companheiros e seus adversários, sem se preocupar com a bola, sem nem mesmo olhar para a bola, pois ele e a bola formam, nesse momento, uma unidade, correm juntos em direção a ele mesmo que se identifica com o gol. Como o virtuose com o seu instrumento: o homem toca o instrumento maravilhosamente porque o instrumento, também, “toca” o homem (vibra o homem).
Não se trata de um fazer técnico, mas de um fazer intuitivo, onde o atirador (o homem) e o alvo (o seu objetivo) se tornam um. Sujeito e objeto, homem e mundo se encontram, se fundem, numa unidade (âmbito da intuição e não da lógica, da razão).  
Esta é a lição contida na história de Musashi, o mais famoso samurai de todos os tempos. É a história, contada nas 1800 páginas de um livro (“Musashi”) que ao ser lido parece ter 100 páginas, de dois excepcionais samurais que traçam para si caminhos diferentes para se aperfeiçoarem e se realizarem na esgrima: Kojiro trilha o caminho da técnica e Musashi o caminho do espírito.
No desfecho do livro, quando esses dois “super-samurais” se enfrentam, trata-se do enfrentamento da técnica (a especialização) com a intuição (a espiritualidade); do modo de ser lógico e racional (domínio, objetificação da atividade a que se dedica, separação do sujeito que faz e do objeto do seu fazer, característica dual do homem ocidental cartesiano) com o modo de ser poético (no sentido grego de se entregar plenamente ao seu fazer que o transforma, unidade entre o homem e as coisas do mundo).
Lembremos que Musashi se dedicava a escultura (atividade poética) como forma de aperfeiçoar seu espírito para a luta. 
Musashi, após ter vencido o embate, que resulta na morte de Kojiro, reflete que este, sem dúvida, detinha uma técnica superior a sua, o que deveria torná-lo o vencedor. Entretanto, Kojiro foi vencido pela incapacidade do seu espírito de se concentrar para alcançar o estado de aniquilamento de si e afastamento do mundo habitual, que o concentraria plenamente na luta.

Narração da luta final (últimas páginas do livro):
 Kojiro e Musashi estão completamente parados, imobilizados um frente ao outro na água rasa da beira do mar, prontos para lutarem por suas vidas.
Musashi se abandona (se entrega) ao vento e ao mar, seus olhos já não são os mesmos de sempre. Seus olhos, profundos como o mar, irradiam tamanha força que provocam no adversário o medo de perder a vida.
Ambos esperam um gesto mínimo de desatenção, desconcentração, do outro, a abertura de uma fenda que permita o golpe fatal.
Musashi adquire espiritualmente o mesmo aspecto do límpido céu azul para alcançar o verdadeiro estado de plenitude, libertar a mente de todo pensamento, manter o espírito sereno em conformidade com o universo. Transcorria um tempo tão curto, mas interminável.
Kojiro grita: “Prepare-se para me entregar a vida”. Mal disse isso, com a mão direita extraiu da bainha a sua longa espada num ágil movimento. Simultaneamente, jogou na água a bainha que, vazia, lhe restava na mão esquerda.
Musashi, então, lhe disse: “Você já perdeu, Kojiro. Se pretendia vencer, jamais se desfaria da bainha de sua espada. Você acabou de jogar a sua vida fora com a bainha, pois, inconscientemente, está com pressa de ver realizada a própria derrota”.
Nesse gesto de atirar a bainha ao mar ele revelou para Musashi uma brecha, uma abertura na sua determinação de vencer, o que o deixou vulnerável (aceitando a possibilidade da derrota, que significaria a sua morte, de que lhe serviria a bainha da espada, ou mesmo a espada?).
Musashi sabe que Kojiro, como esgrimista, é superior a ele, mas a sua capacidade de aniquilamento de si, se coloca em unidade com o seu alvo na condição infalível de atingi-lo.
Musashi desfere, então, o golpe mortal em Kojiro.
O que fizera Musashi vencer um inimigo superior?
Kojiro tinha acreditado na esgrima voltada para a técnica e a força, enquanto Musashi acreditara na esgrima “espiritual”. Essa foi a diferença fatal.

Bibliografia
Eiji Yoshikawa, Musashi
Eugen Herrigel, A arte cavalheiresca do arqueiro zen 

João Santacruz (Nov/2009)
 



quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Ciência, tecnologia e produção artística

 A crise que hoje atravessamos não é somente de caráter social, econômico, ou mesmo moral. Encontramo-nos diante de um desafio: o de saber realizar uma superação criadora deste momento que nos permita alcançar um novo patamar de pensamento, outra maneira de experienciar o mundo e nós mesmos (Nancy Mangabeira Unger, Da foz à nascente).

Introdução
A partir de Heidegger, diversos pensadores, apoiados no relacionamento entre a experiência filosófica e a experiência artística, têm levantado a possibilidade de se encontrar um modo de ser alternativo ao atual modo de ser do homem: dominado e alienado da sua humanidade pelo uso inadequado da tecnologia.

Poiesis: Physis e téchne
Platão diz que todo deixar-viger (o que procede do não vigente para a vigência) é poiesis, é produção.
A produção mais elementar do real é aquela que os antigos gregos chamavam de physis (o que nasce e tem origem por si e não por outro). Distinto da physis há o que o grego chamou de téchne (aquela que é feita pela ação do homem).
Uma árvore produz por si mesma o seu fruto, isso é physis, mas quando se torna uma mesa ou cadeira pela intervenção do homem, isso é techne.
Physis e téchne são dois modos possíveis de poiesis (de produção).
Toda produção que manifesta, que faz viger o que estava encoberto, é poiesis, dinâmica do aparecimento que mostra a realidade desencobrindo o ente (os gregos denominavam entes tudo que é no cosmo: o próprio mundo, a natureza, deuses, homens, palavras, a beleza, a terra, o céu, as estrelas, os animais, os rios, o mar, a mesa, a árvore,  enfim, todas as coisas).
Embora no mundo grego techne (produção feita pela ação do homem) signifique tanto a habilidade artesanal (produção de bens) quanto às belas-artes (produção artística), Heidegger entende que a partir da modernidade, com o advento da ciência e da técnica, torna-se necessário estabelecer uma distinção entre a produção da ciência e da técnica com relação à produção artística.
Para tanto, caracteriza a produção científica de Vor-stellen (pro-por), a produção tecnológica de Ge-stellen (com-por) e a produção artística de Her-stellen (ex-por).

A pro-posição da ciência moderna
Na modernidade, o real é o que ocorre de fato, o que podemos ter certeza, o que pode ser aferido, medido e calculado e, assim, pro-posto objetivamente.
A ciência pro-põe um real que determinado pela causalidade se estrutura em operações e processamentos que podem ser previstos e, assim, previamente calculados e resolvidos.
A partir dessa compreensão moderna, o modo de vigência da realidade a faz aparecer como um objeto, o que está posto no mundo para apreensão do sujeito. Objetos que o tratamento científico pode processar à vontade (os minerais para o geólogo, o corpo dos seres vivos para o biólogo,  os fenômenos naturais para o físico,  as plantas para o botânico, etc.), produzindo uma realidade que se fecha na compreensão de homem (sujeito dominante) e mundo (objeto a seu serviço).
O cientista conhece o mundo como um objeto da sua pesquisa.

A com-posição da técnica moderna
Heidegger esclarece que a técnica moderna é um desencobrimento que faz aparecer o real, todavia não mais como uma produção no sentido de poiesis, pois tem como objetivo compor antecipadamente o que foi proposto pela ciência.
O desencobrimento que rege a técnica moderna é uma exploração sem limites e a qualquer preço da natureza.
A pretensão da técnica é garantir o controle do real, a sua efetiva disponibilidade (o mundo à disposição, a serviço do homem).
Ao desencobrir o real como disponibilidade, o homem e o mundo se tornam elementos da com-posição técnica: o homem se torna força de trabalho e o mundo matéria prima (o que desumaniza o homem e violenta a natureza).
A produção técnica moderna instaura o Império da produção total, onde tudo passa a ser unidimensionalizado na bitola da produtividade.
Heidegger prega que a composição exploradora da técnica moderna, ao pôr a natureza à disposição do homem, oferece o risco de o homem, trocando o ser pelo ter, só ver o mundo a partir da perspectiva produtivista, na qual tudo se torna produção e consumo.
No círculo vicioso da produção e do consumo o homem se aliena, se desumaniza, se tranca no modo de descobrimento do real como disponibilidade, como se esse fosse, pretensamente, o único modo de desencobrimento, e fechando a possibilidade de desencobrimento do real como poiesis.
Heidegger indica que a ex-posição da arte (outra forma de poiesis) é uma modalidade produtiva que pode restituir ao homem a sua humanidade perdida.

A ex-posição da arte
Para os gregos techné não significa mera fabricação ou um simples produzir, mas um modo de saber a realidade, conhecê-la como tal. A essência do saber repousa no desencobrimento do real. Techné como poiesis é criação.
Para os gregos, agir tecnicamente sobre a natureza era reconhecer, fazer aparecer alguma coisa que não separasse, mas antes reafirmasse a integração do homem e do mundo.
O homem quer dispor dos recursos da natureza para dominá-la e, assim, a produção como com-posição técnica torna-se cada vez mais distante da produção como poiesis (criatividade/liberdade de ser).
Esse modo de ser do homem, que se coloca sob o domínio da "razão" e do cálculo, ponto de partida cartesiano, vai definir a era moderna. Nessa perspectiva, a técnica desumaniza o ser humano.
Na produção da arte (processo de criação) não há sujeito ou objeto, mas um acontecimento apropriante, a criação artística põe o homem e o mundo num acontecimento de reciprocidade, não consiste em um simples fazer, mas, antes, em um deixar a obra vir a ser obra.
Esse "deixar o ente ser o que é e como ele é propriamente" perfaz o que Heidegger compreende como liberdade.
Heidegger indica que a exposição artística do real no modo de sua liberdade é o que pode vir a superar a decadência do desencobrimento promovida tanto pela proposição objetificante da ciência, como pela composição exploradora da técnica.
Tanto a ciência como a técnica moderna, ao visarem dispor incondicionalmente da realidade, produzem um real estabelecido previamente, seja pela objetividade ou pela disponibilidade, no qual o homem não mais "reconhece" o outro homem, no qual "arromba a natureza" para servir aos seus objetivos utilitaristas.

Conclusão
Anseios foram depositados na luz da razão e nos recursos da ciência e da tecnologia, vistos como capazes de solucionar os enigmas do Universo, de garantir o domínio humano sobre as forças da natureza, realizando-se a sonhada supremacia humana sobre as demais criaturas do Universo.
Contudo, esses sonhos da razão também produziram monstros e nutriram fantasias perigosas, e Heidegger foi um dos primeiros a detectá-los em seus perigos.
A promessa de livrar o homem do medo e instalá-lo na Terra como senhor e possuidor desandou em administração global e totalitária da vida. A tecnociência atual realiza o projeto moderno: o homem se converte em amo e senhor da natureza, mas ao mesmo tempo a desestabiliza profundamente.
A dinâmica do progresso técnico subtrai-se ao controle ético e subverte em dependência a promessa originária de emancipação.
Seria esse o limiar de uma era pós-humanista, que rompe a aliança entre o progresso da ciência e a elevação ético-moral do gênero humano?
Para Heidegger existem dois tipos de pensamento, sendo ambos à sua maneira legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a reflexão que medita.
O conhecimento é o pensamento, mas o pensamento submisso à razão, o pensamento que calcula.
A crítica do conhecimento visa dar novo sentido ao pensamento: em lugar de um conhecimento no qual a "verdade" seja norma absoluta, que enquadre a vida pela objetividade (ciência) ou pela disponibilidade (técnica), um novo pensamento que possa afirmá-la.
O pensamento como interpretação ultrapassa a "verdade" como absoluto, e busca o modo de ser como liberdade, porque pensar é criar, é interpretar a cada momento o mesmo novamente concedendo-lhe um novo sentido.
Para a fenomenologia, inaugurada por Husserl, a realidade é possibilidade de ser que se revela em múltiplas perspectivas.
A fenomenologia propõe outro modo de ver o mundo, uma "certa maneira" de "visar", de ver a mesma coisa outra vez de outra maneira, pois nada no mundo é sempre a mesma coisa a cada "visada". Cada "Visada" é uma nova perspectiva do mesmo, sempre em mutação.
Cada nova visada confere ao real um novo sentido.
Esse pressuposto não diz respeito somente à verdade que a arte nos revela, mas à própria verdade (a cada vez) revelada ao homem e conferindo sentido ao mundo com o qual ele se relaciona.
Heidegger que nos adverte sobre o perigo da técnica, e acredita que é exatamente essa ameaça cada vez mais iminente que nos conduzirá à reflexão despertadora.
De alguma forma, a "razão" da tecnica deixará de se impor ao homem que continuará a utilizá-la (pois inevitavelmente o homem depende da técnica), mas sabendo manter suas distâncias, sem permitir que as máquinas esvaziem o seu ser.
Hoje é a própria arte que reclama a tarefa hermenêutica, a tarefa de interpretar o mundo (outro modo de saber a realidade) através das suas múltiplas possibilidades de ser (desvelando o que antes estava velado).
É urgente que o homem crie as condições necessárias para a eclosão de uma nova dimensão que reveja a nossa relação com o mundo.
A criatividade humana preserva o elemento irracional, dionisíaco e fantástico, possibilitando ao homem encontrar abrigo naquele espaço onde o real e o irreal ainda coexistem.  Nas palavras de Nietzsche: "A arte existe para que não pereçamos pela razão".
Nas palavras de Maria José Rago (A arte e verdade): "... a própria experiência artística poderá sugerir à filosofia o próprio trajeto de volta ao seu solo originário... A nossa intenção é encontrar um pretexto para que essa arte possa dizer ao discurso filosófico que ele se tece no próprio mundo, ou que se engendra nas relações imprevisíveis entre o homem, o ser, o mundo e o tempo".
Apesar de seu desenvolvimento ocorrer "ao lado" do progresso científico, a arte se aproxima dos segredos da natureza por vias mais secretas. São veredas que se desviam da racionalização científica (do modo de ser fundado na certeza) e se aproximam das dimensões mais sensíveis da vida.
Não podemos permitir que o pensamento que calcula continue a ser o único pensamento admitido e exercido. A experiência artística levanta a possibilidade de descobrirmos nova forma de conhecer, de sentir e, portanto, de ser.
Em todos os domínios da existência as forças dos equipamentos técnicos apertarão cada vez mais o cerco, pois já há muito tempo superaram a capacidade de decisão do homem.
O mais inquietante não é o fato de o mundo se tornar cada vez mais técnico, mas o fato de o homem (na sua humanidade) não estar preparado para esta transformação extremamente acelerada do mundo. Talvez até estejamos involuindo, basta ver a maneira com que hoje tratamos as nossas relações com o outro homem e com a natureza.
Não poderia se abrir ao homem um novo horizonte, no qual a natureza humana e toda a sua obra (inclusive a ciência e a tecnologia) pudessem medrar de uma maneira nova? Mais sintonizadas com as necessidades de toda a humanidade (sem exclusões tão acentuadas) e com o respeito necessária à natureza que é a nossa casa?
Sim, se estivermos suficientemente maduros para trilhar o caminho do pensamento como reflexão meditativa, o que nos abriria o horizonte da convivência com o mundo e com o outro.
Obviamente, para todos nós os equipamentos, aparelhos e máquinas do mundo técnico são imprescindíveis. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo técnico como uma maldição (seria como jogar o neném fora da bacia para se livrar da água suja).
Podemos proceder de outro modo, dizer sim à utilização inevitável dos artefatos técnicos e, ao mesmo tempo, dizer não, impedindo que nos absorvam, nos verguem, nos unidimensionalizem, comandem a nossa natureza humana, operando, assim, uma transformação profunda na relação do homem com a natureza e com o mundo.
A possibilidade que devemos evitar é a de que a revolução da técnica que está a se processar na era atômica possa prender, enfeitiçar, ofuscar e deslumbrar o Homem de tal modo que, um dia, o "pensamento que calcula" venha a ser o único pensamento admitido e exercido, indiferente para com a reflexão, em uma total ausência de pensamento meditativo.

Bibliografia
Fernando Pessoa, Arte e verdade no pensamento de Heidegger.
Heiddgger - A questão da técnica.  In: Ensaios e conferências.
                  - Ciência e pensamento do sentido. In: Ensaios e conferências.  
                  - A origem da obra de arte. In: Caminhos de floresta. 
                  - Sobre a essência da verdade.
                  - Serenidade.
Maria José Rago Campos, Arte e verdade.
Oswaldo Giacóia, Heidegger urgente.


domingo, 14 de setembro de 2014

O homem é um ser submetido às possibilidades do erro ou do acerto, portanto, um ser analógico, e não digital

Este texto decorre da minha leitura do livro de Otl Aicher – Analógico y digital (Editora Gustavo Gili S.A., Barcelona).
O livro é muito objetivo, o que me levou a expandir minhas idéias sobre o assunto em questão. Basicamente me detenho no fato do homem, diferentemente dos outros animais, transcender a sua programação biológica, sendo, portanto, um ser para a liberdade.
Aicher critica a supervalorização que atualmente estamos concedendo à abstração e a exatidão lógica, que ele denomina de “digital”, em detrimento do intuitivo, do apreendido a partir do vivido (da experiência prática e da percepção sensorial), que, em contraposição, denomina de “analógico”.
É importante ter em conta ao ler esse texto que os exemplos apresentados a seguir, do relógio e do GPS, não pretendem negar a utilidade nem a eficiência dos citados mecanismos (o que não está em questão), apenas foram tomados para ressaltar o que essencialmente difere o analógico do digital. Para esse texto, não interessam os mecanismos em si, pois o objetivo é claro: mostrar que o homem é um ser analógico.
Passemos ao exemplo do relógio.
O relógio digital tem a precisão de segundos. Informa magnitudes numéricas exatas, mas não esclarece, por si mesmo, o movimento da passagem do tempo (nos mostra apenas uma série numérica).
Já o analógico, apesar de menos preciso, está mais próximo do nosso vivido, pois nos revela visualmente a totalidade do movimento cíclico que caracteriza a passagem do tempo em sua repetição periódica e interminável (onde tudo se reinicia exatamente onde termina).
Como num mapa, podemos dividir a esfera do relógio analógico em quatro regiões que mostram a totalidade do encadeamento da passagem do tempo: na região direita vemos passar a madrugada (da meia noite às seis da manhã), e na região esquerda a manhã (das seis da manhã ao meio dia), assim, assistimos passar uma volta completa dos ponteiros; agora, na região direita quem passa é a tarde (do meio dia às seis da noite), e na região esquerda a noite (das seis da noite à meia noite). Com isso, todo o ciclo do tempo termina e torna a recomeçar.
Mesmo que o relógio analógico não tivesse os seus números, ainda assim poderíamos interpretar a passagem do tempo (lembremo-nos do relógio do sol utilizado pelos nossos antepassados, formados por uma superfície plana que serve como mostrador, onde estão marcadas linhas que indicam as horas, e por uma placa, cuja sombra projetada sobre o mostrador funciona como um ponteiro de horas em um relógio comum. À medida que a posição do sol varia, a sombra desloca-se pela superfície do mostrador, passando sucessivamente pelas linhas que indicam as horas). Já no relógio digital a falta dos números seria fatal (pois o digital não sobrevive sem os números).
Estes tempos pós-modernos, que tudo nivela numa precisão inumana (numa certeza digital), tentam superar as diferenças próprias da natureza (também da natureza humana) continuamente submetida à possibilidade do erro (somos humanos, imperfeitos e finitos, e não deuses, perfeitos e eternos).
O homem pós-moderno se entregou ao inanimado, ao abstrato, ao virtual (simulação da realidade criada por meios eletrônicos) que caracterizam a precisão digital. Está, a cada dia, desaprendendo, perdendo a sua capacidade de, por si próprio, pensar e interpretar o sentido das coisas. Sentido que só se revela através das relações analógicas tecidas na experiência do vivido.
A indicação digital apresenta um valor exato, indiscutível, um signo limitado à bitola de uma expressão numérica. Enquanto a indicação analógica mostra a relatividade das medidas e dos valores, a diversidade, as partes compondo a totalidade.
Os numerais (nove, cinco, dois) são neutros (significando sempre, exatamente, aquilo que são), os ordinais, têm um caráter analógico, por estabelecerem relações, analogias: o primeiro prêmio, meio litro de cerveja, meio dia.
Essa maneira relacional de pensar pressupõe uma recepção qualitativa de realidades. Qualidade é outra palavra para relação, analogia, pois onde tem relações há comparação e valoração.
O conhecimento digital é certamente mais preciso, porém, não valora.
As vantagens práticas dos mecanismos digitais (capacidade de armazenamento, exatidão, velocidade, etc.) nos precipitaram em uma era digital. O seu impacto no modo de ser do homem já pode ser observado: é brutal e impressionante a modificação que tem implicado em nossa cultura, em nosso comportamento, em nossa compreensão do mundo, em nossa existência.
É quase como se o ser humano tivesse adquirido uma segunda natureza, ou seja, a técnica digital aproxima, cada vez mais, o homem do modo de ser digital. Sua existência, para maior eficiência dos órgãos de controle social, passa a ser medida em números e códigos, seja na escola, na família, como cidadão, no mercado de trabalho, como consumidor, e em todas as suas atividades. O homem é unidimensionalizado, catalogado com segurança através de uma numeração, pois, assim, ficam eliminadas as idiossincrasias próprias da individualidade.
A categorização, própria da informação meramente numérica, esconde a realidade e descarta o particular (o homem real, concreto).  
O homem pensa a partir dos estímulos externos da percepção e percebe com a ajuda do pensar. O homem existe em conjunção com o mundo natural (real), imprevisível, falível, cheio de possibilidades, e, por isso mesmo, é por natureza um ser analógico.
É vivenciando, existindo no mundo real, que o homem, diante das diferentes situações, as compara valora e relaciona, produzindo analogias. E é na possibilidade de comparar, valorar, relacionar, acertar ou errar, se angustiar frente aos nossos erros que está constituída a nossa liberdade, o nosso modo propriamente humano de ser.
O motorista que conduz seu veículo orientado por um GPS, que lhe indica o caminho exato que deve tomar, não está exercendo a sua liberdade de escolha.
Por outro lado, aquele que escolhe seu caminho na visão geral apresentada por um mapa está livre, pode chegar ao mesmo destino escolhendo, entre diversas rotas, aquela que melhor lhe aprouver, abrindo a possibilidade de, ao tomar um caminho mais longo e acidentado, deparar com uma linda e inesperada paisagem (uma cachoeira, uma árvore centenária, um animal a passear ou qualquer outra surpresa reservada pela natureza).
Essa tendência digital vem se impondo sistematicamente ao homem contemporâneo, aproximando seu modo de ser ao do robô cibernético, que é baseado na exatidão e na precisão. A vida humana (parte pensante da natureza) não está fundamentada na precisão, mas em apreender conexões, estados, relações, condições, analogias, que se apresentam como liberdade de escolhas na nossa existência moral, política, estética, religiosa e cultural.
A verdade não é absoluta, pois se dissolve em múltiplos significados que se formam em diferentes perspectivas que se apresentam ao homem em sua existência, em outras palavras, o existir do homem é “pura possibilidade de ser no mundo”, a realidade não é um absoluto que se repete sempre, mas o resultado de uma (con)juntura de homem e natureza, homem e mundo, que se organiza, a cada vez, para formar uma nova e inédita realidade.  
O homem é um ser dotado do senso crítico, e é, por isso, um ser analógico e não digital.
Apesar dos conceitos de analógico e digital procederem do campo da técnica eletrônica, podemos utilizá-los para refletir sobre os cuidados que devemos tomar para não permitir que a experiência digital (muito importante enquanto um instrumento controlado pelo homem e não controlando o homem) comande e transforme o nosso modo de ser propriamente humano: analógico.

Em 12/06/2011 (alterado em 07/2011)


Santacruz 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Antroposmoderno (a televisão e a família)

Millôr Fernandes, em 15/12/2004, apresentou uma charge na revista Veja que despertou a minha atenção:
Um homem sentado na sua poltrona, no momento do seu merecido descanso, olha para a TV na sua frente e vê a si próprio na tela.
Interpretação: É na tela que ele procura se reconhecer, formar seus pontos de vista, suas convicções, sua personalidade. Num abandono anti-reflexivo, pois todo seu pensamento é dirigido para fora e não para o seu interior como é próprio da reflexão, ele busca, numa fantasia, sua identidade com o que vê na tela.
A legenda apresentada abaixo da charge: “A vida de segunda mão” 

“É pela experiência da Televisão que reduzimos a vida ao que se vê.” Marcia Tiburi.

Relendo um texto, escrito na década de 30, pelo pensador alemão Günter Anders (1902/1992), que foi casado com a pensadora alemã Hanna Arendt (1906-1975), captei a essência da charge de Millor Fernandes da qual gostei tanto.
A seguir, faço um resumo (com muitas intervenções minhas, mas sem me desviar da idéia contida no texto). Alguns criticarão as idéias do autor como exageradas, mas aposto que mesmo considerando o radicalismo do texto, não poderão negar que, na essência, é o que está acontecendo.

ANTROPOSMODERNO

O telespectador, pensando tratar-se de um mero lazer o que lhe é oferecido pela TV, está na verdade submetido, sub-repticiamente, a uma transformação que atinge profundamente a sua individualidade e a sua liberdade de pensamento.
A sua individualidade é submetida a um processo de dispersão, ao ter a sua racionalidade subjugada onde ele se encontra mais “desarmado”, mais confiante: a sua casa, no refúgio do seu lar.   
Nenhum método de despersonalização de um homem é mais eficiente do que aquele que simula a intenção de preservar, e até mesmo ampliar, o seu livre arbítrio, sua individualidade, mas que verdadeiramente subjuga (direciona, condiciona) a sua liberdade de escolha.
Esse método o envolve quando na privacidade da sua casa não percebe a ameaça a que está sendo submetido por aqueles que lhe fornecem o lazer televisivo.
Esse tipo de lazer (que na verdade se trata de um estímulo ao consumo de produtos materiais e, principalmente, de unidimensionalizações ideológicas) ameaça a relação privada, intensa, íntima, da família. A privacidade compartilhada, de grande importância na formação moral, política e comportamental de cada membro da família, se desintegra.
Entre os homens primitivos, o “encontro” (coesão, unidade, sentimento de grupo, compartilhamento) da família, e mais extensamente do grupo, se dava ao redor da fogueira. O calor do fogo representava a segurança e o acolhimento, o sentimento de ternura pelos filhos e companheiros.
Posteriormente, quando o homem evoluiu da condição de caçador nômade para a de agricultor sedentário (passando a fixar moradia), a lareira veio substituir a fogueira nas regiões frias (perceba a palavra lar inscrita na palavra lar-eira).
Mais adiante na história, a mesa no centro da sala assumiu o papel, antes atribuído à fogueira e à lareira, de ponto de “encontro” da família.
Hoje, a mesa começou a perder (em muitas casas já perdeu) sua força de aglutinação da família. Foi encontrado o seu sucessor, o televisor acabou transformando-se em uma mesa negativa da família.
Na realidade, a TV não se tornou o centro da família. Ao contrário, ela descentralizou, desintegrou, a família. A TV exerce uma força centrífuga na família (a mesa exercia uma força centrípeta), ou seja, as poltronas em frente da TV estão arrumadas de forma que os membros da família não mais se olham de frente uns para os outros como em uma mesa.
Além dessa disposição no espaço físico que inibe o diálogo, olhar para o outro pode custar a perda de algo “importante” que se passa na tela (conversa-se apenas eventualmente, em flashes, descontinuamente, superficialmente, não há qualquer debate compartilhado por eles).
Os membros da família não estão mais unidos, mas apenas uns ao lado dos outros, são meros espectadores, numa sala de audiência em miniatura (nas sábias palavras do segurança da biblioteca que frequento: “tão perto, mas tão distantes).
A TV não é interativa, não admite diálogo, nem interlocutor, cabe apenas aos membros de uma família olhar fixamente para a tela todos ao mesmo tempo, mas isolados, em todos os sentidos, uns dos outros.
A família foi (re)estruturada em uma mini-platéia, e a casa moldada em uma sala de cinema, onde a mídia, verdadeiramente e artificiosamente, expõe, apresenta, “planta” subliminarmente seus produtos na mente dos nossos “tele consumidores”. O consumo de bens é trazido para nossas casas assim como o gás, a água ou a eletricidade.
O que, em geral, a TV traz pra nossas casas é um mundo “(re)produzido” (o jornal apresenta o que convém aos anunciantes, não o que convém ao telespectador).       
O telespectador, em um processo de alienação sem o saber, é levado a acreditar que está se tornando um homem atualizado e bem informado, que está em uma relação de grande intimidade com tudo e com todos (“estou sintonizado, antenado, com o mundo”), enquanto mal conhece o vizinho ao lado.
Pensa que conhece muito bem os artistas e apresentadores de TV, inclusive suas vidas pessoais, sempre comentadas pela imprensa, pelas revistas (que em sua superficialidade jamais substituem um livro) e, por extensão, julgadas e discutidas nas reuniões de amigos e parentes.
As atitudes de alguns artistas são reconhecidas como louváveis e dignas, e a de outros como moralmente condenáveis. Alguns são heróis, outros patifes. Os telefofoqueiros julgam os artistas como pessoas que lhes são familiares.

Obs: e ainda não falamos sobre o computador, dos tabletes e dos smartphones diante do qual cada internauta se coloca totalmente distante daqueles poucos e íntimos que lhe estão próximos (os seus familiares), e se acha tão próximo das dezenas de “amigos do face book” que estão tão distantes (em todos os sentidos). 
     

João Carlos Santacruz (Dez/2010)