quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Antroposmoderno (a televisão e a família)

Millôr Fernandes, em 15/12/2004, apresentou uma charge na revista Veja que despertou a minha atenção:
Um homem sentado na sua poltrona, no momento do seu merecido descanso, olha para a TV na sua frente e vê a si próprio na tela.
Interpretação: É na tela que ele procura se reconhecer, formar seus pontos de vista, suas convicções, sua personalidade. Num abandono anti-reflexivo, pois todo seu pensamento é dirigido para fora e não para o seu interior como é próprio da reflexão, ele busca, numa fantasia, sua identidade com o que vê na tela.
A legenda apresentada abaixo da charge: “A vida de segunda mão” 

“É pela experiência da Televisão que reduzimos a vida ao que se vê.” Marcia Tiburi.

Relendo um texto, escrito na década de 30, pelo pensador alemão Günter Anders (1902/1992), que foi casado com a pensadora alemã Hanna Arendt (1906-1975), captei a essência da charge de Millor Fernandes da qual gostei tanto.
A seguir, faço um resumo (com muitas intervenções minhas, mas sem me desviar da idéia contida no texto). Alguns criticarão as idéias do autor como exageradas, mas aposto que mesmo considerando o radicalismo do texto, não poderão negar que, na essência, é o que está acontecendo.

ANTROPOSMODERNO

O telespectador, pensando tratar-se de um mero lazer o que lhe é oferecido pela TV, está na verdade submetido, sub-repticiamente, a uma transformação que atinge profundamente a sua individualidade e a sua liberdade de pensamento.
A sua individualidade é submetida a um processo de dispersão, ao ter a sua racionalidade subjugada onde ele se encontra mais “desarmado”, mais confiante: a sua casa, no refúgio do seu lar.   
Nenhum método de despersonalização de um homem é mais eficiente do que aquele que simula a intenção de preservar, e até mesmo ampliar, o seu livre arbítrio, sua individualidade, mas que verdadeiramente subjuga (direciona, condiciona) a sua liberdade de escolha.
Esse método o envolve quando na privacidade da sua casa não percebe a ameaça a que está sendo submetido por aqueles que lhe fornecem o lazer televisivo.
Esse tipo de lazer (que na verdade se trata de um estímulo ao consumo de produtos materiais e, principalmente, de unidimensionalizações ideológicas) ameaça a relação privada, intensa, íntima, da família. A privacidade compartilhada, de grande importância na formação moral, política e comportamental de cada membro da família, se desintegra.
Entre os homens primitivos, o “encontro” (coesão, unidade, sentimento de grupo, compartilhamento) da família, e mais extensamente do grupo, se dava ao redor da fogueira. O calor do fogo representava a segurança e o acolhimento, o sentimento de ternura pelos filhos e companheiros.
Posteriormente, quando o homem evoluiu da condição de caçador nômade para a de agricultor sedentário (passando a fixar moradia), a lareira veio substituir a fogueira nas regiões frias (perceba a palavra lar inscrita na palavra lar-eira).
Mais adiante na história, a mesa no centro da sala assumiu o papel, antes atribuído à fogueira e à lareira, de ponto de “encontro” da família.
Hoje, a mesa começou a perder (em muitas casas já perdeu) sua força de aglutinação da família. Foi encontrado o seu sucessor, o televisor acabou transformando-se em uma mesa negativa da família.
Na realidade, a TV não se tornou o centro da família. Ao contrário, ela descentralizou, desintegrou, a família. A TV exerce uma força centrífuga na família (a mesa exercia uma força centrípeta), ou seja, as poltronas em frente da TV estão arrumadas de forma que os membros da família não mais se olham de frente uns para os outros como em uma mesa.
Além dessa disposição no espaço físico que inibe o diálogo, olhar para o outro pode custar a perda de algo “importante” que se passa na tela (conversa-se apenas eventualmente, em flashes, descontinuamente, superficialmente, não há qualquer debate compartilhado por eles).
Os membros da família não estão mais unidos, mas apenas uns ao lado dos outros, são meros espectadores, numa sala de audiência em miniatura (nas sábias palavras do segurança da biblioteca que frequento: “tão perto, mas tão distantes).
A TV não é interativa, não admite diálogo, nem interlocutor, cabe apenas aos membros de uma família olhar fixamente para a tela todos ao mesmo tempo, mas isolados, em todos os sentidos, uns dos outros.
A família foi (re)estruturada em uma mini-platéia, e a casa moldada em uma sala de cinema, onde a mídia, verdadeiramente e artificiosamente, expõe, apresenta, “planta” subliminarmente seus produtos na mente dos nossos “tele consumidores”. O consumo de bens é trazido para nossas casas assim como o gás, a água ou a eletricidade.
O que, em geral, a TV traz pra nossas casas é um mundo “(re)produzido” (o jornal apresenta o que convém aos anunciantes, não o que convém ao telespectador).       
O telespectador, em um processo de alienação sem o saber, é levado a acreditar que está se tornando um homem atualizado e bem informado, que está em uma relação de grande intimidade com tudo e com todos (“estou sintonizado, antenado, com o mundo”), enquanto mal conhece o vizinho ao lado.
Pensa que conhece muito bem os artistas e apresentadores de TV, inclusive suas vidas pessoais, sempre comentadas pela imprensa, pelas revistas (que em sua superficialidade jamais substituem um livro) e, por extensão, julgadas e discutidas nas reuniões de amigos e parentes.
As atitudes de alguns artistas são reconhecidas como louváveis e dignas, e a de outros como moralmente condenáveis. Alguns são heróis, outros patifes. Os telefofoqueiros julgam os artistas como pessoas que lhes são familiares.

Obs: e ainda não falamos sobre o computador, dos tabletes e dos smartphones diante do qual cada internauta se coloca totalmente distante daqueles poucos e íntimos que lhe estão próximos (os seus familiares), e se acha tão próximo das dezenas de “amigos do face book” que estão tão distantes (em todos os sentidos). 
     

João Carlos Santacruz (Dez/2010)

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