quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Técnica versus intuição

Kitaro Nishida, filósofo japonês (1868), utilizou-se de um conceito-chave para caracterizar a cultura japonesa: “intuição-ato”, a intuição que se forma no momento do próprio ato.
Para elucidar a idéia de Nishida, Hisayasu Nakagawa, professor emérito da Universidade de Kioto, em seu livro “Introdução à cultura japonesa”, cita o depoimento do filósofo alemão Eugen Herrigel (1884-1955) sobre a aprendizagem do tiro de arco. 
Herrigel foi professor da Universidade de Erlangen (Alemanha) e, além de livros de filosofia, escreveu dois livros sobre o tiro de arco e um sobre o Zen budismo.
Em seu livro “A arte de tiro de arco japonês” narra um episódio que vivenciou com seu mestre japonês. Seu mestre pediu-lhe que atirasse sem se preocupar com o alvo, que não mirasse, não pensasse no alvo nem no modo de atingi-lo, enfim, que não pensasse em nada.   
Explicou-lhe que: “se o alvo e o atirador se tornassem um, a flecha que parte do centro entra no centro. Pois não se está mirando o centro, mas a si mesmo”.
Herrigel resistiu à idéia de não mirar o alvo. O mestre lhe falou: “se você quer ser um especialista do tiro de arco não posso ajudá-lo, sou apenas mestre espiritual”.
Herrigel confessou que não se conformava em ser um atirador “espiritual”.
Então, o mestre lhe ensinou que qualquer samurai quando se coloca em posição de luta seu espírito se concentra para alcançar um estado de plena meditação, de aniquilamento de si, e que o samurai só volta a si após o combate, quando retorna ao mundo habitual.

Reflexão sobre a incapacidade de Herrigel de atender ao seu mestre e a história do samurai Musashi.
Herrigel e seu mestre japonês estão separados por uma distância intransponível: culturas totalmente diferentes. 
A experiência vivida pelo atirador não pode ser explicada, nem apreendida por nenhum raciocínio lógico. Não se trata de um conhecimento especializado.
A “intuição-ato” é de um âmbito radicalmente diverso (radical no sentido de fundamentado na raiz) do âmbito da técnica. O fazer técnico, um modo de ser tipicamente ocidental (cartesiano), pressupõe uma dualidade (uma separação) entre o homem que age para uma finalidade e o objeto da sua ação.
A “intuição-ato” é a intuição atualizada, ou seja, transformada em ato em determinado momento (extra)ordinário. Portanto, raramente alcançado e somente por homens “especiais”, radicalmente abertos, prontos para se entregarem à força de uma possibilidade, o que exclui o homem regido pelo modo de ser cartesiano, radicalmente lógico, fechado na sua racionalidade, movido pela certeza, objetivo, utilitarista.
É a intuição que se conforma ao ato. É o homem se transformando no seu próprio fazer, tal qual Pelé correndo no campo com a bola a seus pés, completamente livre para observar todo o campo a sua volta, seus companheiros e seus adversários, sem se preocupar com a bola, sem nem mesmo olhar para a bola, pois ele e a bola formam, nesse momento, uma unidade, correm juntos em direção a ele mesmo que se identifica com o gol. Como o virtuose com o seu instrumento: o homem toca o instrumento maravilhosamente porque o instrumento, também, “toca” o homem (vibra o homem).
Não se trata de um fazer técnico, mas de um fazer intuitivo, onde o atirador (o homem) e o alvo (o seu objetivo) se tornam um. Sujeito e objeto, homem e mundo se encontram, se fundem, numa unidade (âmbito da intuição e não da lógica, da razão).  
Esta é a lição contida na história de Musashi, o mais famoso samurai de todos os tempos. É a história, contada nas 1800 páginas de um livro (“Musashi”) que ao ser lido parece ter 100 páginas, de dois excepcionais samurais que traçam para si caminhos diferentes para se aperfeiçoarem e se realizarem na esgrima: Kojiro trilha o caminho da técnica e Musashi o caminho do espírito.
No desfecho do livro, quando esses dois “super-samurais” se enfrentam, trata-se do enfrentamento da técnica (a especialização) com a intuição (a espiritualidade); do modo de ser lógico e racional (domínio, objetificação da atividade a que se dedica, separação do sujeito que faz e do objeto do seu fazer, característica dual do homem ocidental cartesiano) com o modo de ser poético (no sentido grego de se entregar plenamente ao seu fazer que o transforma, unidade entre o homem e as coisas do mundo).
Lembremos que Musashi se dedicava a escultura (atividade poética) como forma de aperfeiçoar seu espírito para a luta. 
Musashi, após ter vencido o embate, que resulta na morte de Kojiro, reflete que este, sem dúvida, detinha uma técnica superior a sua, o que deveria torná-lo o vencedor. Entretanto, Kojiro foi vencido pela incapacidade do seu espírito de se concentrar para alcançar o estado de aniquilamento de si e afastamento do mundo habitual, que o concentraria plenamente na luta.

Narração da luta final (últimas páginas do livro):
 Kojiro e Musashi estão completamente parados, imobilizados um frente ao outro na água rasa da beira do mar, prontos para lutarem por suas vidas.
Musashi se abandona (se entrega) ao vento e ao mar, seus olhos já não são os mesmos de sempre. Seus olhos, profundos como o mar, irradiam tamanha força que provocam no adversário o medo de perder a vida.
Ambos esperam um gesto mínimo de desatenção, desconcentração, do outro, a abertura de uma fenda que permita o golpe fatal.
Musashi adquire espiritualmente o mesmo aspecto do límpido céu azul para alcançar o verdadeiro estado de plenitude, libertar a mente de todo pensamento, manter o espírito sereno em conformidade com o universo. Transcorria um tempo tão curto, mas interminável.
Kojiro grita: “Prepare-se para me entregar a vida”. Mal disse isso, com a mão direita extraiu da bainha a sua longa espada num ágil movimento. Simultaneamente, jogou na água a bainha que, vazia, lhe restava na mão esquerda.
Musashi, então, lhe disse: “Você já perdeu, Kojiro. Se pretendia vencer, jamais se desfaria da bainha de sua espada. Você acabou de jogar a sua vida fora com a bainha, pois, inconscientemente, está com pressa de ver realizada a própria derrota”.
Nesse gesto de atirar a bainha ao mar ele revelou para Musashi uma brecha, uma abertura na sua determinação de vencer, o que o deixou vulnerável (aceitando a possibilidade da derrota, que significaria a sua morte, de que lhe serviria a bainha da espada, ou mesmo a espada?).
Musashi sabe que Kojiro, como esgrimista, é superior a ele, mas a sua capacidade de aniquilamento de si, se coloca em unidade com o seu alvo na condição infalível de atingi-lo.
Musashi desfere, então, o golpe mortal em Kojiro.
O que fizera Musashi vencer um inimigo superior?
Kojiro tinha acreditado na esgrima voltada para a técnica e a força, enquanto Musashi acreditara na esgrima “espiritual”. Essa foi a diferença fatal.

Bibliografia
Eiji Yoshikawa, Musashi
Eugen Herrigel, A arte cavalheiresca do arqueiro zen 

João Santacruz (Nov/2009)
 



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