Técnica versus intuição
Kitaro
Nishida, filósofo japonês (1868), utilizou-se de um conceito-chave para
caracterizar a cultura japonesa: “intuição-ato”, a intuição que se forma no
momento do próprio ato.
Para
elucidar a idéia de Nishida, Hisayasu Nakagawa, professor emérito da
Universidade de Kioto, em seu livro “Introdução à cultura japonesa”,
cita o depoimento do filósofo alemão Eugen Herrigel (1884-1955) sobre a
aprendizagem do tiro de arco.
Herrigel
foi professor da Universidade de Erlangen (Alemanha) e, além de livros de
filosofia, escreveu dois livros sobre o tiro de arco e um sobre o Zen budismo.
Em
seu livro “A arte de tiro de arco japonês” narra um episódio que vivenciou com
seu mestre japonês. Seu mestre pediu-lhe que atirasse sem se preocupar com o
alvo, que não mirasse, não pensasse no alvo nem no modo de atingi-lo, enfim,
que não pensasse em nada.
Explicou-lhe
que: “se o alvo e o atirador se tornassem um, a flecha que parte do centro
entra no centro. Pois não se está mirando o centro, mas a si mesmo”.
Herrigel
resistiu à idéia de não mirar o alvo. O mestre lhe falou: “se você quer ser um especialista
do tiro de arco não posso ajudá-lo, sou apenas mestre espiritual”.
Herrigel
confessou que não se conformava em ser um atirador “espiritual”.
Então,
o mestre lhe ensinou que qualquer samurai quando se coloca em posição de luta
seu espírito se concentra para alcançar um estado de plena meditação, de
aniquilamento de si, e que o samurai só volta a si após o combate, quando
retorna ao mundo habitual.
Reflexão
sobre a incapacidade de Herrigel de atender ao seu mestre e a história do
samurai Musashi.
Herrigel
e seu mestre japonês estão separados por uma distância intransponível: culturas
totalmente diferentes.
A
experiência vivida pelo atirador não pode ser explicada, nem apreendida por
nenhum raciocínio lógico. Não se trata de um conhecimento especializado.
A
“intuição-ato” é de um âmbito radicalmente diverso (radical no sentido de
fundamentado na raiz) do âmbito da técnica. O fazer técnico, um modo de ser
tipicamente ocidental (cartesiano), pressupõe uma dualidade (uma separação)
entre o homem que age para uma finalidade e o objeto da sua ação.
A
“intuição-ato” é a intuição atualizada, ou seja, transformada em ato em
determinado momento (extra)ordinário. Portanto, raramente alcançado e somente
por homens “especiais”, radicalmente abertos, prontos para se entregarem
à força de uma possibilidade, o que exclui o homem regido pelo modo de ser
cartesiano, radicalmente lógico, fechado na sua racionalidade, movido
pela certeza, objetivo, utilitarista.
É
a intuição que se conforma ao ato. É o homem se transformando no seu próprio
fazer, tal qual Pelé correndo no campo com a bola a seus pés, completamente
livre para observar todo o campo a sua volta, seus companheiros e seus
adversários, sem se preocupar com a bola, sem nem mesmo olhar para a bola, pois
ele e a bola formam, nesse momento, uma unidade, correm juntos em direção a ele
mesmo que se identifica com o gol. Como o virtuose com o seu instrumento: o homem
toca o instrumento maravilhosamente porque o instrumento, também, “toca” o
homem (vibra o homem).
Não
se trata de um fazer técnico, mas de um fazer intuitivo, onde o atirador (o
homem) e o alvo (o seu objetivo) se tornam um. Sujeito e objeto, homem e mundo
se encontram, se fundem, numa unidade (âmbito da intuição e não da lógica, da
razão).
Esta
é a lição contida na história de Musashi, o mais famoso samurai de todos os
tempos. É a história, contada nas 1800 páginas de um livro (“Musashi”) que ao
ser lido parece ter 100 páginas, de dois excepcionais samurais que traçam para
si caminhos diferentes para se aperfeiçoarem e se realizarem na esgrima: Kojiro
trilha o caminho da técnica e Musashi o caminho do espírito.
No
desfecho do livro, quando esses dois “super-samurais” se enfrentam, trata-se do
enfrentamento da técnica (a especialização) com a intuição (a espiritualidade);
do modo de ser lógico e racional (domínio, objetificação da atividade a que se
dedica, separação do sujeito que faz e do objeto do seu fazer, característica
dual do homem ocidental cartesiano) com o modo de ser poético (no sentido grego
de se entregar plenamente ao seu fazer que o transforma, unidade entre o homem
e as coisas do mundo).
Lembremos
que Musashi se dedicava a escultura (atividade poética) como forma de aperfeiçoar
seu espírito para a luta.
Musashi,
após ter vencido o embate, que resulta na morte de Kojiro, reflete que este,
sem dúvida, detinha uma técnica superior a sua, o que deveria torná-lo o
vencedor. Entretanto, Kojiro foi vencido pela incapacidade do seu espírito de
se concentrar para alcançar o estado de aniquilamento de si e afastamento do
mundo habitual, que o concentraria plenamente na luta.
Narração
da luta final (últimas páginas do livro):
Kojiro e Musashi estão completamente parados, imobilizados
um frente ao outro na água rasa da beira do mar, prontos para lutarem por suas
vidas.
Musashi
se abandona (se entrega) ao vento e ao mar, seus olhos já não são os mesmos de
sempre. Seus olhos, profundos como o mar, irradiam tamanha força que provocam
no adversário o medo de perder a vida.
Ambos
esperam um gesto mínimo de desatenção, desconcentração, do outro, a abertura de
uma fenda que permita o golpe fatal.
Musashi
adquire espiritualmente o mesmo aspecto do límpido céu azul para alcançar o
verdadeiro estado de plenitude, libertar a mente de todo pensamento, manter o
espírito sereno em conformidade com o universo. Transcorria um tempo tão curto,
mas interminável.
Kojiro
grita: “Prepare-se para me entregar a vida”. Mal disse isso, com a mão direita
extraiu da bainha a sua longa espada num ágil movimento. Simultaneamente, jogou
na água a bainha que, vazia, lhe restava na mão esquerda.
Musashi,
então, lhe disse: “Você já perdeu, Kojiro. Se pretendia vencer, jamais se desfaria
da bainha de sua espada. Você acabou de jogar a sua vida fora com a bainha,
pois, inconscientemente, está com pressa de ver realizada a própria derrota”.
Nesse
gesto de atirar a bainha ao mar ele revelou para Musashi uma brecha, uma
abertura na sua determinação de vencer, o que o deixou vulnerável (aceitando a
possibilidade da derrota, que significaria a sua morte, de que lhe serviria a
bainha da espada, ou mesmo a espada?).
Musashi
sabe que Kojiro, como esgrimista, é superior a ele, mas a sua capacidade de
aniquilamento de si, se coloca em unidade com o seu alvo na condição infalível
de atingi-lo.
Musashi
desfere, então, o golpe mortal em Kojiro.
O
que fizera Musashi vencer um inimigo superior?
Kojiro
tinha acreditado na esgrima voltada para a técnica e a força, enquanto Musashi
acreditara na esgrima “espiritual”. Essa foi a diferença fatal.
Bibliografia
Eiji Yoshikawa, Musashi
Eugen Herrigel, A arte cavalheiresca do arqueiro zen
João
Santacruz (Nov/2009)
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