Ciência, tecnologia e produção artística
“A crise
que hoje atravessamos não é somente de caráter social, econômico, ou mesmo moral. Encontramo-nos diante de um desafio: o de saber
realizar uma superação criadora deste momento que
nos permita alcançar um novo patamar de
pensamento, outra maneira de experienciar o mundo e nós mesmos” (Nancy Mangabeira Unger, Da foz à nascente).
Introdução
A partir de Heidegger, diversos pensadores, apoiados no relacionamento
entre a experiência filosófica e a experiência artística, têm levantado a
possibilidade de se encontrar um modo de ser alternativo ao atual modo de ser
do homem: dominado e alienado da sua humanidade pelo uso inadequado da
tecnologia.
Poiesis: Physis e téchne
Platão diz que todo deixar-viger (o que procede do não vigente para a
vigência) é poiesis, é produção.
A produção mais elementar do real é aquela que os antigos gregos chamavam
de physis (o que nasce e tem origem por si e não por outro). Distinto da physis há o que o grego chamou de téchne (aquela que é feita pela ação do
homem).
Uma árvore produz por si mesma o seu fruto, isso é physis, mas quando se torna uma mesa ou
cadeira pela intervenção do homem, isso é techne.
Physis e téchne são dois modos possíveis de poiesis (de produção).
Toda produção que manifesta, que faz viger o que estava encoberto, é poiesis, dinâmica do aparecimento que
mostra a realidade desencobrindo o ente (os gregos denominavam entes tudo que é
no cosmo: o próprio mundo, a natureza, deuses, homens, palavras, a beleza, a
terra, o céu, as estrelas, os animais, os rios, o mar, a mesa, a árvore, enfim, todas as coisas).
Embora no mundo grego techne (produção feita pela ação do homem) signifique tanto a habilidade
artesanal (produção de bens) quanto às belas-artes (produção artística),
Heidegger entende que a partir
da modernidade, com o advento da ciência
e da técnica, torna-se necessário estabelecer uma distinção entre a produção da ciência
e da técnica com relação à produção artística.
Para tanto, caracteriza a produção científica de Vor-stellen (pro-por), a
produção tecnológica de Ge-stellen (com-por) e a produção artística de
Her-stellen (ex-por).
A pro-posição da ciência moderna
Na modernidade, o real é o que ocorre de fato, o que podemos ter certeza, o que
pode ser aferido, medido e calculado e, assim, pro-posto objetivamente.
A ciência pro-põe um real que determinado pela causalidade se estrutura em
operações e processamentos que podem ser previstos e, assim, previamente
calculados e resolvidos.
A partir dessa compreensão moderna, o modo de vigência da realidade a faz aparecer como um objeto, o que está posto no mundo para apreensão do sujeito. Objetos que o
tratamento científico pode processar à vontade (os minerais para o geólogo, o
corpo dos seres vivos para o biólogo, os
fenômenos naturais para o físico, as
plantas para o botânico, etc.), produzindo uma realidade que se fecha na
compreensão de homem (sujeito dominante) e mundo (objeto a seu serviço).
O cientista conhece o mundo como um objeto da sua pesquisa.
A com-posição da técnica moderna
Heidegger esclarece que a técnica moderna é um desencobrimento que faz
aparecer o real, todavia não mais como uma produção no sentido de poiesis, pois tem como objetivo compor antecipadamente o que foi proposto pela ciência.
O desencobrimento que rege a técnica moderna é uma exploração sem limites e
a qualquer preço da natureza.
A pretensão da técnica é garantir o controle do real, a sua efetiva disponibilidade (o mundo
à disposição, a serviço do homem).
Ao desencobrir o real como disponibilidade, o homem e o mundo se tornam
elementos da com-posição técnica: o homem se torna força de trabalho e o mundo
matéria prima (o que desumaniza o homem e violenta a natureza).
A produção técnica moderna instaura o Império da produção total, onde tudo
passa a ser unidimensionalizado na bitola da produtividade.
Heidegger prega que a composição exploradora da técnica moderna, ao pôr a
natureza à disposição do homem, oferece o risco de o homem, trocando o ser pelo
ter, só ver o mundo a partir da perspectiva produtivista, na qual tudo se torna
produção e consumo.
No círculo vicioso da produção e do consumo o homem se aliena, se
desumaniza, se tranca no modo de descobrimento do real como disponibilidade, como se
esse fosse, pretensamente, o único modo de desencobrimento, e fechando a possibilidade de desencobrimento do
real como poiesis.
Heidegger indica que a ex-posição da arte (outra forma de poiesis) é uma modalidade
produtiva que pode restituir ao homem a sua humanidade perdida.
A ex-posição da arte
Para os gregos techné não significa mera fabricação ou um simples produzir, mas um modo de saber a realidade,
conhecê-la como tal. A essência do saber repousa no desencobrimento do real. Techné como poiesis é criação.
Para os gregos, agir tecnicamente sobre a natureza era reconhecer, fazer
aparecer alguma coisa que não separasse, mas antes reafirmasse a integração do
homem e do mundo.
O homem quer dispor dos recursos da natureza para dominá-la e, assim, a
produção como com-posição técnica torna-se cada vez mais distante da produção
como poiesis (criatividade/liberdade de
ser).
Esse modo de ser do homem, que se coloca sob o domínio da "razão"
e do cálculo, ponto de partida cartesiano, vai definir a era moderna. Nessa
perspectiva, a técnica desumaniza o ser humano.
Na produção da arte (processo de criação) não há sujeito ou objeto, mas um
acontecimento apropriante, a criação artística põe o homem e o mundo num
acontecimento de reciprocidade, não consiste em um simples fazer, mas, antes,
em um deixar a obra vir a ser obra.
Esse "deixar o ente ser o que é e como ele é propriamente" perfaz
o que Heidegger compreende como liberdade.
Heidegger indica que a exposição artística do real no modo de sua liberdade
é o que pode vir a superar a decadência do desencobrimento promovida tanto pela
proposição objetificante da ciência, como pela composição exploradora da
técnica.
Tanto a ciência como a técnica moderna, ao visarem dispor
incondicionalmente da realidade, produzem um real estabelecido previamente, seja
pela objetividade ou pela disponibilidade, no qual o homem não mais
"reconhece" o outro homem, no qual "arromba a natureza"
para servir aos seus objetivos utilitaristas.
Conclusão
Anseios foram depositados na luz da razão e nos recursos da ciência e da
tecnologia, vistos como capazes de solucionar os enigmas do Universo, de
garantir o domínio humano sobre as forças da natureza, realizando-se a sonhada
supremacia humana sobre as demais criaturas do Universo.
Contudo, esses sonhos da razão também produziram monstros e nutriram
fantasias perigosas, e Heidegger foi um dos primeiros a detectá-los em seus
perigos.
A promessa de livrar o homem do medo e instalá-lo na Terra como senhor e
possuidor desandou em administração global e totalitária da vida. A tecnociência
atual realiza o projeto moderno: o homem se converte em amo e senhor da
natureza, mas ao mesmo tempo a desestabiliza profundamente.
A dinâmica do progresso técnico subtrai-se ao controle ético e subverte em
dependência a promessa originária de emancipação.
Seria esse o limiar de uma era pós-humanista, que rompe a aliança entre o
progresso da ciência e a elevação ético-moral do gênero humano?
Para Heidegger existem dois tipos de pensamento, sendo ambos à sua maneira
legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a reflexão que medita.
O conhecimento é o pensamento, mas o pensamento submisso à razão, o
pensamento que calcula.
A crítica do conhecimento visa dar novo sentido ao pensamento: em lugar de
um conhecimento no qual a "verdade" seja norma absoluta, que enquadre
a vida pela
objetividade (ciência) ou pela disponibilidade (técnica), um novo pensamento
que possa afirmá-la.
O pensamento como
interpretação ultrapassa a
"verdade" como
absoluto, e busca o modo de ser como
liberdade, porque pensar é
criar, é interpretar a cada momento o
mesmo novamente concedendo-lhe um novo sentido.
Para a fenomenologia, inaugurada por Husserl, a realidade é possibilidade
de ser que se revela em múltiplas perspectivas.
A fenomenologia propõe outro modo de ver o mundo, uma "certa
maneira" de "visar", de ver a mesma coisa outra vez de outra
maneira, pois nada no mundo é sempre a mesma coisa a cada "visada".
Cada "Visada" é uma nova perspectiva do mesmo, sempre em mutação.
Cada nova visada confere ao real um novo sentido.
Esse pressuposto não diz respeito somente à verdade que a arte nos revela,
mas à própria verdade (a cada vez) revelada ao homem e conferindo sentido ao
mundo com o qual ele se relaciona.
Heidegger que nos adverte sobre o perigo da técnica, e acredita que é
exatamente essa ameaça cada vez mais iminente que nos conduzirá à reflexão
despertadora.
De alguma forma, a "razão" da tecnica deixará de se impor ao
homem que continuará a utilizá-la (pois inevitavelmente o homem depende da
técnica), mas sabendo manter suas distâncias, sem permitir que as máquinas esvaziem o seu ser.
Hoje é a própria arte que reclama a tarefa hermenêutica, a tarefa de
interpretar o mundo (outro modo
de saber a realidade) através
das suas múltiplas possibilidades de ser (desvelando o que antes estava
velado).
É urgente que o homem crie as condições necessárias para a eclosão de uma nova dimensão que
reveja a nossa relação com o mundo.
A criatividade humana preserva o elemento irracional, dionisíaco e
fantástico, possibilitando ao homem encontrar abrigo naquele espaço onde o real
e o irreal ainda coexistem. Nas palavras
de Nietzsche: "A arte existe para que não pereçamos pela razão".
Nas palavras de Maria José Rago (A arte e verdade): "... a própria
experiência artística poderá sugerir à filosofia o próprio trajeto de volta ao
seu solo originário... A nossa intenção é encontrar um pretexto para que essa
arte possa dizer ao discurso filosófico que ele se tece no próprio mundo, ou
que se engendra nas relações imprevisíveis entre o homem, o ser, o mundo e o
tempo".
Apesar de seu desenvolvimento ocorrer "ao lado" do progresso
científico, a arte se aproxima dos segredos da natureza por vias mais secretas.
São veredas que se desviam da racionalização científica (do modo de ser fundado
na certeza) e se aproximam das dimensões mais sensíveis da vida.
Não podemos permitir que o pensamento que calcula continue a ser o único
pensamento admitido e exercido. A experiência artística levanta a possibilidade
de descobrirmos nova forma de
conhecer, de sentir e, portanto, de ser.
Em todos os domínios da existência as forças dos equipamentos técnicos
apertarão cada vez mais o cerco, pois já há muito tempo superaram a capacidade de decisão do homem.
O mais inquietante não é o fato de o mundo se tornar cada vez mais técnico,
mas o fato de o homem (na sua humanidade) não estar preparado para esta
transformação extremamente acelerada do mundo. Talvez até estejamos involuindo,
basta ver a maneira com que hoje tratamos as nossas relações com o outro homem
e com a natureza.
Não poderia se abrir ao homem um novo horizonte, no qual a natureza humana
e toda a sua obra (inclusive a ciência e a tecnologia) pudessem medrar de uma
maneira nova? Mais sintonizadas com as necessidades de toda a humanidade (sem
exclusões tão acentuadas) e com o respeito necessária à natureza que é a nossa
casa?
Sim, se estivermos suficientemente maduros para trilhar o caminho do
pensamento como reflexão meditativa, o que nos abriria o horizonte da
convivência com o mundo e com o outro.
Obviamente, para todos nós os equipamentos, aparelhos e máquinas do mundo
técnico são imprescindíveis. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo
técnico como uma maldição (seria como jogar o neném fora da bacia para se
livrar da água suja).
Podemos proceder de outro modo, dizer sim à utilização inevitável dos
artefatos técnicos e, ao mesmo tempo, dizer não, impedindo que nos absorvam,
nos verguem, nos unidimensionalizem, comandem a nossa natureza humana,
operando, assim, uma transformação profunda na relação do homem com a natureza
e com o mundo.
A possibilidade que devemos evitar é a de que a revolução da técnica que
está a se processar na era atômica possa prender, enfeitiçar, ofuscar e
deslumbrar o Homem de tal modo que, um dia, o "pensamento que
calcula" venha a ser o único pensamento admitido e exercido, indiferente
para com a reflexão, em uma total ausência de pensamento meditativo.
Bibliografia
Fernando Pessoa, Arte e verdade no pensamento de Heidegger.
Heiddgger - A questão da técnica.
In: Ensaios e conferências.
- Ciência e
pensamento do sentido. In: Ensaios e conferências.
- A origem da obra
de arte. In: Caminhos de floresta.
- Sobre a essência
da verdade.
- Serenidade.
Maria José Rago Campos, Arte e verdade.
Oswaldo Giacóia, Heidegger urgente.